O fundo eleitoral, criado para moralizar o financiamento das campanhas, se transformou em um sistema de privilégios sustentado pelo contribuinte. Bilhões de reais, que poderiam atender às urgências sociais, financiam campanhas, salários e estruturas partidárias permanentes. É o comenta o escritor Palmarí de Lucena. Segundo o escritor, “uma engrenagem que perpetua oligarquias, distorce a democracia e escancara a captura do Estado por uma elite política desconectada da população.” Confira íntegra…
Há algo de profundamente desconcertante no modo como o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, mais conhecido como fundo eleitoral, se consolidou como uma das maiores contradições da democracia brasileira. Criado sob a justificativa de moralizar as campanhas após a proibição do financiamento empresarial, o que se viu, na prática, foi a substituição de um vício por outro, desta vez chancelado pelo próprio Estado. O que deveria ser um instrumento de equilíbrio transformou-se, rapidamente, em um dispositivo de manutenção de privilégios e distorções estruturais da política nacional.
O crescimento dos valores destinados ao fundo eleitoral beira o escárnio. Saltou de R$ 1,7 bilhão em 2018 para absurdos R$ 4,9 bilhões em 2022, em um país onde faltam recursos para saúde, educação, segurança pública e políticas sociais. Não há como ignorar a perversidade dessa equação: enquanto milhões de brasileiros esperam meses por uma consulta médica ou enfrentam escolas sucateadas, bilhões são transferidos diretamente para campanhas eleitorais, muitas vezes de candidatos que jamais se constrangeram em fazer da política um balcão de negócios.
Os defensores do fundo argumentam que ele serve para evitar a influência do poder econômico privado nas eleições. No entanto, essa narrativa desaba quando confrontada com a realidade. A captura dos recursos públicos pelos grandes partidos, os critérios opacos de distribuição interna, e os incontáveis relatos de fraudes, candidaturas laranjas e prestação de contas fictícia revelam que o fundo, na prática, funciona como uma engrenagem que fortalece quem já controla o jogo político — e não como instrumento de democratização.
Além disso, há uma prática que torna esse sistema ainda mais distorcido: os partidos passaram a usar parte desse dinheiro público não só para campanhas, mas também para manter suas estruturas funcionando o ano inteiro. Pagam salários altos para dirigentes, ex-ministros, ex-assessores e até pessoas condenadas pela Justiça. É dinheiro público bancando escritórios, advogados, marqueteiros e consultores que, muitas vezes, trabalham mais para proteger interesses pessoais dos chefes partidários do que para fortalecer a democracia. Na prática, os partidos viraram empresas financiadas pelo cidadão, mas sem qualquer obrigação de prestar contas com o mesmo rigor. E o mais grave: esse dinheiro não serve só para preparar eleições — serve para sustentar, o tempo todo, uma elite política que vive à custa do contribuinte.
A própria Justiça Eleitoral, que deveria zelar pela lisura do processo, mantém uma relação ambígua com esse sistema. Em seus manuais, alerta para os riscos do abuso de poder econômico e político, mas fecha os olhos para o fato de que o próprio modelo de financiamento público, do jeito que está estruturado, se tornou uma modalidade sofisticada de abuso institucionalizado. Afinal, que outro nome dar à apropriação de bilhões de reais do orçamento público para garantir vantagens eleitorais a quem já detém as máquinas partidárias, os currais eleitorais e os mandatos?
A sociedade, perplexa e muitas vezes resignada, assiste a esse ciclo vicioso em que os mesmos que defendem rigor fiscal, cortes de benefícios sociais e austeridade não hesitam, sem o menor constrangimento, em turbinar o fundo eleitoral a cada ciclo, protegendo seus interesses com uma desenvoltura que beira o cinismo. E fazem isso num país onde milhões vivem sem saneamento, sem transporte decente e sem acesso digno à saúde ou à educação.
O fato é que o fundo eleitoral, tal como foi concebido e como vem sendo operado, não apenas escancara a captura do Estado pela classe política, como também simboliza a falência ética de um sistema que se tornou incapaz de se reformar por dentro. Diante desse quadro, a pergunta que se impõe é direta e urgente: até quando aceitaremos financiar, à força, campanhas e estruturas partidárias que não fortalecem a democracia, mas que, ao contrário, aprofundam o fosso que separa representantes e representados? Até quando vamos tolerar que nossos impostos, ao invés de serem aplicados nas urgências da população, sirvam para sustentar o ciclo de privilégios de uma elite política que há muito deixou de nos representar?
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