Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena postula como “a democracia é, antes de tudo, o regime da palavra”, e, por isso, “em tempos conturbados, quando o verbo inflama e a retórica se torna ferramenta de ruptura, até mesmo a palavra entra no campo da exceção”. Confira íntegra…
A democracia é, antes de tudo, o regime da palavra. E nela que se revela a política e se constrói o dissenso civilizado. Governar, protestar, convencer – tudo passa pela voz. Mas em tempos conturbados, quando o verbo inflama e a retórica se torna ferramenta de ruptura, até mesmo a palavra entra no campo da exceção. E o silêncio, quando imposto pelo Estado, deixa de ser ausência e vira mensagem.
Foi o que se viu no Brasil nos últimos anos. Dois ex-presidentes — de campos opostos, mas igualmente influentes – foram alvos de decisões que, direta ou indiretamente, restringiram sua comunicação com o público. Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, foi impedido de conceder uma entrevista. Jair Bolsonaro, anos depois, teve suas redes sociais monitoradas, postagens removidas e contatos com aliados vetados. Em comum, o mesmo protagonista: o Supremo Tribunal Federal.
A decisão que silenciou Lula partiu do ministro Luiz Fux. À época, o ex-presidente estava preso em Curitiba após condenação na Lava Jato, mas ainda era uma figura central no imaginário político do país. Com a eleição se aproximando, a Folha de S.Paulo obteve autorização do ministro Ricardo Lewandowski para entrevistá-lo. Horas depois, Fux revogou a autorização. Justificou sua decisão com base na ordem pública e na preservação da normalidade eleitoral.
Argumentou-se que Lula, mesmo inelegível, poderia interferir no processo por meio da força simbólica da palavra.
Do ponto de vista jurídico, Fux agiu com base em uma leitura restritiva do impacto eleitoral de um preso influente. Mas do ponto de vista institucional, a medida soou como censura. Entidades da imprensa reagiram, alegando violação à liberdade de informação. A entrevista, só publicada meses depois, já não possuía valor eleitoral. O tempo — e o silêncio – cumpriram sua função.
Anos mais tarde, o silêncio trocou de lado. Jair Bolsonaro, então fora da Presidência, passou a ser investigado pelo Supremo por incitação ao golpe, propagação de notícias falsas e participação em articulações contra o sistema eleitoral. Sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o STF impôs restrições à sua atuação digital, determinou a retirada de conteúdos e proibiu contatos com investigados, inclusive com o próprio filho, Eduardo Bolsonaro. A justificativa era outra – proteger a democracia de ataques coordenados. Mas o instrumento foi o mesmo: calar.
É importante reconhecer que as situações são distintas. Lula era um preso político em uma campanha eleitoral sensível. Bolsonaro, um ex-presidente investigado por atentado à ordem institucional. No entanto, em ambos os casos, a decisão de suprimir a palavra — ainda que temporariamente – provocou o mesmo desconforto: o de ver a Suprema Corte assumir o papel de editora do discurso político nacional.
Nos Estados Unidos, algo semelhante ocorre sob o nome de gag order — ordens judiciais que impedem réus ou envolvidos em processos de se pronunciarem publicamente, com o objetivo de preservar a integridade do julgamento. São medidas excepcionais e frequentemente contestadas, pois tocam no coração da Primeira Emenda americana. No Brasil, não se usa o termo, mas a prática se insinua em decisões pontuais, ora para preservar a estabilidade institucional, ora para evitar manipulações da opinião pública. O problema é que, sem limites claros, o que começa como exceção pode virar rotina.
Luiz Fux, embora não tenha protagonizado as medidas mais severas contra Bolsonaro, foi uma figura central na formação do entendimento de que a liberdade de expressão tem limites. Como presidente do STF entre 2020 e 2022, reiterou que o Judiciário não poderia ser refém de ataques ou discursos que corroessem suas bases. Defendeu, sempre em tom ponderado, que o verbo político precisa respeitar a Constituição – e que os tribunais têm a obrigação de agir quando isso não ocorre.
Mas é preciso cautela. A democracia se alimenta do ruído, não do silêncio. Quando a Justiça silencia vozes, mesmo que com razões legítimas, ela corre o risco de minar a própria credibilidade de seu papel. O Judiciário é o guardião das liberdades, mas não seu dono. E a confiança que nele se deposita depende, entre outras coisas, da sua capacidade de proteger o direito de falar — inclusive quando não concorda com o que se diz.
A palavra, por vezes, fere. Mas a mordaça, quando institucionalizada, machuca mais.
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