PENSAMENTO PLURAL Flor de ir embora, por Gal Gasset
Gal Gasset traz, em sua mais recente crônica, um mosaico de apanhados mitológicos, desde o Édipo, de Sófocles, traçando um paralelo com os Neandertais e os índios cariris, tão bem resgatados por Euclides da Cunha, eu Os Sertões, para arrematar pontuando como “o atual recrudescimento das ações estatais nos lembra o reino descrito por Sófocles”. Na trama, como se sabe, “Antígona não aceita a crueldade dispensada ao irmão e desafia a ordem do governante”, e prefere morrer do que sucumbir à tirania. Um espelho dos tempos atuais? Confira a integra do comentário:
Uma das únicas coisas que o homem não pode fazer é o próprio funeral. Então, é preciso cativar as pessoas durante a vida, para que façam isso por ele. Aliás, a vida humana é tão somente a preparação para a chegada desse momento. Na arqueologia, são comuns os estudos de evidências obituárias que foram preservadas no decorrer do tempo. Muitas vezes os corpos eram preparados cuidadosamente para o descanso final. Em outras ocasiões, acidentes acabaram por preservar esses vestígios, a exemplo dos soterramentos. Com exceção do canibalismo, por motivos óbvios, até mesmo as cremações podem deixar testemunhos materiais do modo de vida de determinada população ancestral.
Sófocles apresentou sua imortal tragédia grega em 442 a.C. Cumprindo a profecia, Édipo desvendou a charada da Esfinge, matou o Rei Laio, seu pai, e casou-se com Jocasta, sua mãe. O amor carnal de mãe e filho gerou quatro filhos. Quando revelada a relação incestuosa, Édipo cega a si mesmo e Jocasta comete suicídio. Tempos depois, os filhos Etéocles e Polinice matam-se mutuamente em uma batalha. O Rei Creonte ordena que Etéocles receba honras póstumas de herói. No entanto, a Polinice caberia o abandono ao relento para ser vilipendiado por cães e abutres. Antígona, uma das irmãs, não se resigna à imposição draconiana. Ela descumpre a legislação de Creonte e soleniza o enterro de Polinice. Creonte se enfurece e ameaça Antígona de morte. Diante do tirano, Antígona sustenta a defesa do inato direito humano à despedida condigna. Assim, fez-se oposição à ordem injusta, severa e desproporcional. Sua outra irmã, Ismênia, não se solidariza, chegando mesmo a repreendê-la.
Os neandertais constituem uma raça de hominídeos que viveu entre 130 e 30 mil anos atrás e chegou a coexistir com o “homo sapiens sapiens”. Em 2016, o Dr. Willian Rendu publicou na revista científica PNAS as pesquisas arqueológicos em La Champelle-aux-Saints, na França. Escavações exibiram os restos mortais de duas crianças e um adulto neandertal. Análises geológicas apontam que a depressão em que estavam os corpos possui características diferentes do solo natural do entorno. Isso indica que houve sepultamento. Não se sabe se foi uma ação mística ou de ordem prática. O achado demonstrou que a proximidade cognitiva desses primatas com os homens atuais é maior do que se imaginava.
O estudo do Dr. Albérico Queiroz, pesquisador da UFAL, publicado na Revista Antípoda em 2017, revelou a existência de contextos mortuários complexos na sub-região alagoana de Xingó. Em algumas covas foram encontrados animais cuidadosamente inumados, junto dos humanos. Fez-se então uma analogia com os “psicopompos”, que na mitologia grega são seres que servem de guias no caminho da vida à morte. Eles podem ser de natureza humana (Ariadne), animal (coelho de Alice) ou espiritual (Hermes). Quando animais, comumente são aves de rapina, como águias, falcões e corujas. A mesma crença é relatada na literatura sul-americana sobre o período pré-colonial referente ao complexo Huaca del Sol e Huaca de la Luna, localizado no Peru.
Na paisagem do município de São João do Rio do Tigre, microrregião do Cariri Paraibano, abrigavam-se os índios Cariris, descritos por Euclides da Cunha n´Os Sertões. Na contemporaneidade, ali foram conhecidos três cemitérios indígenas, os sítios arqueológicos Barra, Serrote da Macambira e Serrote dos Letreiros. O arqueólogo e pesquisador Dr. Azevedo Netto, da UFPB, publicou diversos trabalhos referentes a essa área, a partir de 2011. Em uma das necrópoles analisadas foram identificados 15 indivíduos humanos. A datação cronológica dos ossos resultou na idade de pelo menos 2 mil anos. Uma análise contextual indicou práticas elaboradas, com um claro sentido simbólico nos atos funéreos. A cultura material associada aos enterramentos inclui pinturas rupestres e artefatos cerâmicos, líticos e de cestaria. Uma comovente revelação foi um antiquíssimo buquê de flores dedicado a um dos corpos.
A região de São Leopoldo (MG) possui um polo de pesquisas arqueológicas encampadas pela USP. Nos anos 1970, ali foi descoberta a materialidade remanescente do povo da Lagoa Santa. A célebre Luzia é considerada o fóssil humano mais antigo das Américas. Depois de 11 mil anos, porém, seus vestígios resistiram apenas parcialmente ao incêndio do Museu Nacional, em 2018, no Rio de Janeiro. Na tragédia brasileira, múmias egípcias de mais de 3 mil anos de idade foram reduzidas a cinzas. Sem comentários.
O atual recrudescimento das ações estatais nos lembra o reino descrito por Sófocles. Na trama, Antígona não aceita a crueldade dispensada ao irmão e desafia a ordem do governante. A irmã Ismênia se acovarda. Tenta convencer Antígona a desistir, pois o estado não pode ser contestado. Insiste ainda que a rebeldia de Antígona causaria também sua morte. Antígona ponderou que é preferível morrer do que aceitar a vilania. Sucumbir por motivo tão nobre seria uma glória. Viver com a desonra de acatar a sordidez é muito pior.
No sentido metafórico, cabe a cada um a escolha de qual papel assumir. Antígona, coerente e corajosa. Ou Ismênia, a pusilânime.
(Obs: o título “Flor de ir embora” é uma alusão à música homônima da cantora e compositora Fátima Guedes).
(Foto: Neandertal – domínio público)
*Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.