PENSAMENTO PLURAL A muralha sem fim, por Gal Gasset
A construção da Grande Muralha foi um dos eventos mais significativos da China e um marco da tecnologia. Mas, as obras consumiram a vida de milhares de chineses, tanto quanto os 21 mil quilômetros previstos de sua extensão. A partir desse fato, Gal Gasset observa em sua crônica mais recente como a China, apesar de todo o avanço em tecnologia, não teve o mesmo avanço na moralidade e nas liberdades individuais. Ela cita como exemplo recente o caso do início da pandemia que, atualmente, assola todo o mundo, a partir de Wuhan. Confira a íntegra de seu texto…
A Grande Muralha da China é uma das sete maravilhas do mundo moderno. Em mandarim, “Wan Li Chang Cheng”, como é denominada, significa “Muralha sem Fim”. A construção se deu a partir do ano 215 a.C, pelo Primeiro Imperador, Qin Chi Huang [260-210 a.C]. O nome do país, China, é uma referência a ele (Chi+na). Obcecado por segurança e aficionado por grandes obras, Chi mandou juntar de forma contínua várias torres e muros já existentes.
O objetivo declarado da obra seria proteger-se dos povos nômades do norte. Mas outras razões se impuseram, como o envio de “desajustados” para o degredo com trabalhos forçados. Os soldados, que estavam ociosos, foram ocupados. Ainda se gerou trabalho e renda a aldeões, mulheres e crianças. Quando pronta, a obra serviu para aquartelar os soldados ao longo da sua extensão, mantendo-se a logística e o controle imperial. Nessa etapa, a muralha alcançou 4 mil quilômetros, sendo ampliada nas dinastias posteriores. Por mais de 20 séculos, partes da muralha foram sendo edificadas, e ainda hoje somam 21 mil quilômetros.
A construção tornou-se um evento social significativo. Em 1917, Franz Kafka [1883-1924] escreveu “A Muralha da China”. O autor narrou a visão de um operário durante a obra. Eram grupos de vinte pessoas que levantavam blocos de 500 metros, que se uniam a outros blocos feitos por outras equipes. A finalização era celebrada com honrarias. Participar disso era uma forma de agir sob o comando do soberano, o que dava sentido de pertencimento do indivíduo ao projeto coletivo. E assim, o povo entregava suas vidas nas mãos do governante.
Dizem que a cada metro da edificação, uma vida foi perdida, conforme a expressão “com nossa carne e nosso sangue, construímos a muralha”. Estima-se que 2 milhões de pessoas foram envolvidas no projeto. Muitos acabavam perecendo por fadiga e má alimentação. Os corpos alquebrados serviram de reboco, tendo a muralha por túmulo. Era fácil morrer também nas ações militares de inimigos. Ao final da empreitada, os trabalhadores restantes podiam ser executados, para se evitar a revelação de segredos. Segundo o folclore, a chinesa Meng Jiangnu procurou insistentemente por seu marido operário. Na impossibilidade de encontrá-lo, ela se desespera e chora lágrimas tão amargas que parte da muralha desmorona e revela os ossos do amado. Desolada, ela se mata.
Na gestão de Chi, o Primeiro Imperador, a China progrediu bastante nas tecnologias, mas nem tanto no campo da moralidade. Criou-se um sistema monetário, com a cunhagem de moedas. A escrita foi padronizada e a linguagem se desenvolveu. Isso permitiu a troca de ideias e o consequente questionamento das ações arbitrárias do estado. Para calar as vozes dissonantes, queimaram os escritos e enterraram vivos 460 eruditos. O país que deu ao mundo o papel e a tinta foi também pioneiro no sacrifício de livros e de intelectuais.
A muralha é, acima de tudo, um mecanismo de observação, de controle e de afirmação da grandeza do império. Acreditava-se que a muralha seria vista da lua, a olho nu. Em 1972, o astronauta americano Gene Cernan voltou da missão Apollo 17 dizendo que, em órbita a 320 quilômetros da terra, teria visto a Muralha da China. Mas o astronauta Yang Liwei, um chinês, o desmentiu. Da espaçonave Shenzhou, ele procurou, mas não avistou a muralha. Provou-se que identificação da muralha só é possível com equipamentos de amplificação de imagem, tal qual ocorre com outras grandes obras de engenharia, como as Pirâmides do Egito.
Curiosamente, acaba de ser publicado um estudo da Universidade de Harvard, com dados coletados por satélites e inteligência artificial. Infere-se que a disseminação do Vírus do Morcego ocorreu em data anterior àquela informada pelas autoridades chinesas. As buscas na Internet pelas palavras-chave “tosse” e “diarréia” se intensificaram na região inicial do surto a partir de agosto de 2019. Nesse mesmo período, imagens de satélite mostram o aumento do fluxo de carros nos estacionamentos de hospitais da região. Os resultados não são conclusivos, mas indicam que a lenda do surgimento acidental do vírus no mercado público de Wuhan, em novembro, é só uma lenda mesmo.
A China é reconhecidamente um país em que as liberdades individuais são muito limitadas. Até mesmo a reprodução humana é dominada pelo estado, que utiliza o aborto forçado no manejo da natalidade. A prática religiosa também é rigidamente controlada. Cristãos e muçulmanos relatam perseguições. Diante disso, fica a reflexão: se você nasceu livre, agradeça efusivamente, pois não foi sua escolha. E sendo livre, não permita que lhe sejam retiradas partes, por ínfimas que sejam, de sua liberdade e sua individualidade. Tenha em mente que uma liberdade perdida dificilmente será restaurada.
(Imagem: Pintura do século XVIII mostrando o imperador Qin Shi Huang ‘queimando todos os livros e jogando eruditos em um barranco’ para acabar com a não-conformidade ideológica após a unificação da China em 221 a.C.)
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