PENSAMENTO PLURAL Viagem ao Fim do Mundo, por Palmarí de Lucena
Em sua mais recente crônica e em viagem à chamada terra do fim do mundo por ser a última fronteira no Sul das Américas antes da Antártica, o escritor Palmarí de Lucena aborda a devastação ambiental da Patagônia causada por políticas públicas equivocadas e desenvolvimento a qualquer custo, “é um grito de alerta para aqueles que querem transformar a Amazônia em um museu a céu aberto da incompetência e ganância que impera no País”. Confira a íntegra de seu comentário…
Escondidos na curvatura meridional da terra, os desafios e as contradições da Patagônia. Superfície coberta de vegetação de estepe, moitas rasteiras espinhentas e pequenos arbustos. Vastidão da paisagem decorada por variações esquisitas de folhagem verde e acinzentada, combinação perfeita com a cor azul turquesa quase iluminada dos lagos e a brancura de picos distantes. Estrada de asfalto com curvas fechadas, cercas demarcando grandes estâncias, grupos de casas minúsculas, justapondo-se com a beleza inóspita da paisagem diante de nós. Condor desvendando os mistérios da terra, planando sem pressa no céu azul. Éramos intrusos em uma pradaria magistralmente despojada de seres humanos e os confortos da vida moderna.
Prólogo da sangrenta ocupação e colonização do deserto, extinguindo, submetendo ou dispersando o Povo Originário. Crenças milenares não foram suficientemente potentes ou persuasivas para protegê-los dos preconceitos e da ganância dos novos donos da terra. Darwinismo econômico europeu, escrevendo o epílogo de uma história milenar. Revolução tecnológica fomentada pela demanda de carne e lã no mercado internacional. Refúgio para todos: colonizadores, marginais, santos ou bêbados, sempre escapando dos seus passados, transformando-se em hóspedes incômodos da geografia gigantesca ou desterrados no lugar conhecido como a Terra do Fim do Mundo.
Castor, o segundo maior roedor do mundo, foi intensamente caçado durante a colonização do Canadá nos séculos XVI, XVII e XVIII, por sua valiosa pele. Em uma tentativa de replicar a experiência canadense, foram importados 25 casais de castores em 1946, para serem criados nas terras gélidas do Tierra de Fuego. Ingenuidade e falta de conhecimentos sobre as estruturas ambientais, fizeram desta aventura mercantil uma tragédia sem precedentes, castores além de adaptarem muito bem ao seu novo habitat, puderam reinar em absoluto na ausência de predadores, que possam manter o equilíbrio de forças. Hoje, mais de 135.000 destes adoráveis roedores estão devastando as florestas nativas os riachos do Sul da Patagônia. Ironicamente, a caça e a indústria de peles nunca prosperaram. Arvores e truta arco-íris também foram introduzidas na região, descaracterizado o bioma, ameaçando o ecossistema, habitats ou espécies nativas.
Navegamos cautelosamente o Canal dos icebergs do Lago Argentino em direção ao glaciar “Perito Moreno”, a maior geleira do Parque Nacional dos Glaciares. Seguimos no dia seguinte pelo braço norte do lago Argentino, percorrendo as geleiras Upsala, uma das maiores e Spegazzini, a mais alta, entrando nas baías que elas formam, icebergs de tamanhos e formas variadas, todos de coloração profundamente azul.
Vistas espetaculares criadas por camadas sucessivas de neve compactada, descendo da Cordilheira dos Andes em direção ao Lago. Contemplamos em silêncio a imensa parede de gelo, uma cortina branca azulada, guardiã de nuances e mistérios do nosso planeta, espalhando-se relevo acima entre as montanhas da cordilheira. Aconteciam estalos e fissuras periódicas na superfície da geleira, seguidas do desprendimento de grandes blocos, icebergs flutuando em águas leitosas, azul-turquesa e brilhantes, iniciando suas viagens pelo Lago Argentino, um ritual milenar.