PENSAMENTO PLURAL A caçada às fraudes: verdade ou teatro político?, por Palmarí de Lucena

Em sua nova crônica, o escritor Palmarí de Lucena, ora no Japão, diz que Elon Musk se posiciona como caçador de fraudes no governo, “mas sua abordagem privilegia o espetáculo sobre a realidade”. E acrescenta: “A extrema direita transforma narrativas conspiratórias em política oficial, manipulando dados para justificar cortes e reforçar sua agenda, e no teatro da desinformação, os fatos são descartáveis, e a verdade é irrelevante diante da necessidade de manter a base mobilizada”. Confira íntegra de seu comentário…

A promessa de erradicar fraudes e desperdícios do governo federal tornou-se um dos pilares da nova administração, mas a realidade mostra que essa narrativa tem um propósito diferente do declarado. Mais do que combater irregularidades, a ofensiva liderada por Elon Musk parece ser apenas mais um capítulo do grande espetáculo político promovido pela extrema direita.

Recentemente, influenciadores da direita foram recebidos na Casa Branca para a divulgação de documentos relacionados à investigação sobre Jeffrey Epstein. Saíram de lá com pastas de materiais e listas de nomes com informações censuradas, posando para fotos com os documentos em uma mão e brindes da campanha de Trump na outra. O evento simbolizou a culminação de anos de teorias conspiratórias impulsionadas pelo QAnon, que alimentam a crença de que figuras do Partido Democrata seriam expostas. O fato de Trump ter sido um conhecido associado de Epstein foi ignorado.

A chegada de Pam Bondi ao Departamento de Justiça aumentou a expectativa por revelações contundentes, mas a entrega não atendeu às promessas. Apesar de existirem informações ainda não divulgadas sobre Epstein, não há evidências de que grandes nomes serão implicados. A crença de que tais revelações surgirão se baseia na mesma fé que sustentava as acusações contra Joe Biden sobre os negócios de seu filho. O material apresentado por Bondi sequer era inédito: a lista de contatos de Epstein já havia sido publicada pelo site Gawker há mais de uma década.

Outrora, teorias da conspiração limitavam-se às margens do debate público. Hoje, no entanto, elas ditam a agenda do governo. A extrema direita soube transformar a política em uma narrativa contínua, na qual o governo e suas instituições são pintados como vilões de uma trama distorcida. A professora Kate Starbird, da Universidade de Washington, comparou esse fenômeno ao teatro de improvisação, onde os influenciadores ajustam suas performances conforme a reação da audiência.

Trump sempre operou nesse modelo, moldando seu discurso com base no que mais ressoa com sua base. Agora, essa lógica foi incorporada ao governo federal, impulsionada por redes sociais como o X (antigo Twitter), de propriedade de Elon Musk. A fusão entre política e entretenimento criou um cenário no qual a verdade tornou-se irrelevante diante da necessidade de alimentar constantemente novas crises e manter a base mobilizada.

Musk, além de suas diversas empresas, agora se posiciona como o grande caçador de fraudes no governo federal. No entanto, sua abordagem está longe de ser cuidadosa. Em vez de auditorias rigorosas, ele promove cortes arbitrários, guiado pelo entusiasmo de seus seguidores online. Como resultado, programas essenciais, como o combate ao ebola, foram desmontados, enquanto supostas economias bilionárias foram infladas por erros ou manipulações de dados. Os dados são frios, mas a criatividade dos mentirosos é quente. O governo não precisa provar que encontrou fraudes reais – basta repetir as alegações e transformar números duvidosos em manchetes alarmistas.

A intenção, ao que tudo indica, não é encontrar fraudes reais, mas sim enfraquecer a máquina pública para que Trump possa reconstrui-la à sua maneira. A palavra “fraude” tornou-se um código para qualquer investimento que não esteja alinhado com a agenda ultraconservadora, que enxerga o Estado como um inimigo a ser desmontado.

O presidente da Câmara, Mike Johnson, defendeu Musk ao afirmar que seus algoritmos estão identificando “enormes quantidades de fraude” na Seguridade Social. Contudo, quando confrontado com a constatação de que a auditoria do próprio órgão apontou que menos de 1% dos pagamentos eram indevidos, Johnson simplesmente respondeu: “Não acredito nisso.”

Essa rejeição de dados concretos reflete um dos princípios centrais da extrema direita contemporânea: a negação da realidade como estratégia política. Em um ambiente em que os fatos são descartáveis, qualquer fracasso pode ser atribuído a conspirações ou inimigos invisíveis. Como no caso de Bondi, se Musk falhar em entregar o que prometeu, a culpa será redirecionada, e o espetáculo seguirá.

Musk realmente encontrará fraude antes que a base de Trump perceba a manipulação? Provavelmente não. Mas isso pouco importa. No teatro da política atual, o objetivo não é resolver problemas reais, mas sim alimentar uma narrativa que mantenha a extrema direita no controle. Enquanto isso, o show continua.

 

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