PENSAMENTO PLURAL Paris: onde a tentação se revela a cada esquina, por Palmarí de Lucena

Têm sido marcantes as recentes crônicas de viagem do escritor Palmarí de Lucena, que esteve, recentemente, no Japão e na França. Neste texto, Palmarí traça seu itinerário por Paris, uma cidade, a seu ver, inesquecível e para a qual sempre se deve voltar. “Há lugares em Paris onde o tempo hesita, como se a cidade, em um gesto de ternura, deixasse suas esquinas repousarem sobre a memória”, poetiza o escritor. Confira íntegra…

Paris não surpreende — seduz. Não é uma cidade a ser descoberta, mas degustada com os cinco sentidos. A única dúvida real é por onde começar: pela gastronomia requintada, pelos mergulhos culturais, pelos passeios sem destino ou por aquele prazer puro de deixar-se levar pelo inesperado?

Foi assim, ao acaso e com o coração aberto, que nos encontramos a escassos cinquenta metros da La Grande Epicerie de Paris, um verdadeiro templo gourmet onde os sabores são tratados com reverência. Entre queijos curados, patês artesanais e doces em vitrines cintilantes, começamos a traçar, com o paladar, o roteiro da nossa estadia.

Logo depois, seguimos em caminhada leve pela charmosa Rue du Bac, em direção ao Boulevard Saint-Germain. No caminho, uma pausa para o espírito: a Capela da Medalha Milagrosa. Ali, entre murmúrios de fé e silêncio contemplativo, o tempo pareceu suspenso.

Como que guiados por um roteiro invisível, aportamos no lendário Les Deux Magots. Mais do que um café, é um marco da vida intelectual parisiense. Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, Hemingway, Juliette Gréco — todos eles, em algum momento, deixaram ali suas ideias pairando no ar, entre goles de café e debates existenciais.

Sentados à sombra da história, com Saint-Germain-des-Prés pulsando ao redor, entendemos: Paris não é feita de itinerários rígidos, mas de encontros improváveis, revelações discretas e tentações irresistíveis.

Flanar pela Champs-Élysées é um rito quase obrigatório para quem visita Paris. O boulevard pulsa com uma energia vibrante, onde se entrelaçam raças, idiomas, estilos e sonhos. As calçadas largas acolhem uma multidão em constante movimento: casais, famílias, mochileiros e fashionistas que param aqui e ali, distraídos, tirando selfies diante das vitrines reluzentes ou apenas observando a dança urbana ao redor.

Nem todas as vitrines sao acessiveis ao bolso da maioria, é verdade. Muitas delas – como a imponente fachada da Louis Vuitton – parecem feitas mais para serem admiradas do que frequentadas.

Mas isso pouco importa. O essencial, ao que parece, é marcar presença, eternizar o momento diante de símbolos de luxo e desejo. A Champs-Élysées, afinal, é tanto uma passarela quanto um palco onde cada um desempenha, por alguns instantes, seu papel na grande cena parisiense.

Há lugares em Paris onde o tempo hesita, como se a cidade, em um gesto de ternura, deixasse suas esquinas repousarem sobre a memória. O Carrefour de l’Odéon é um desses pontos onde o passado não se esconde – apenas se acomoda, gentil e discreto, entre uma xícara de café e uma vitrine de livraria.

E é caminhando pela Rue de l’Ancienne Comédie, entre vitrines tímidas e portas de madeira, que se chega ao Le Procope, o mais antigo restaurante de Paris. Fundado em 1686, ele é uma cápsula de tempo, onde Voltaire trocava ideias por café, Diderot tramava a Encyclopédie e Napoleão, dizem, deixou um chapéu em penhor de uma dívida. As paredes, carregadas de quadros e espelhos dourados, não escondem sua vaidade histórica. Sentar-se ali é participar, por um instante, do banquete do Iluminismo.

Descendo suavemente a Rue Dauphine, o passeio se alonga até a Pont Neuf, a mais antiga ponte da cidade, onde a luz de fim de tarde banha o Sena com um dourado líquido. Jovens se reúnem com garrafas de vinho, músicos tocam violão, e turistas — sem culpa – registram com seus celulares uma Paris que, mesmo capturada em pixels, parece resistir à banalidade.

Caminhamos pela margem esquerda do rio em direção à Ile de la Cité, considerada o coração histórico de Paris – berço da imponente Catedral de Notre-Dame. Mesmo ferida pelo incêndio que quase apagou para sempre sua presença no imaginário francês, Notre-Dame ressurge aos poucos. Ainda em processo de restauração, já revela parte do seu esplendor e da beleza gótica que há séculos abriga as orações e esperanças do povo francês. Iluminada por refletores e contemplada por pequenos grupos silenciosos, permanece símbolo de fé e resistência – uma sentinela entre as águas do Sena,

Partimos no dia seguinte para o Japao, fortalecidos pela diversidade e desafios de uma curta passagem por Paris. Regressamos duas semanas depois, com a alma expandida por dois mundos distintos – e igualmente fascinantes.

E se Saint-Germain representa a Paris dos pensamentos elevados, a Rue Cler, mais ao sudoeste, é a Paris da vida bem vivida. Nessa pequena rua de pedestres, entre a Torre Eiffel e os segredos do 7° arrondissement, o luxo está no cotidiano: nos queijos curados à perfeição, nas frutas dispostas como obras de arte, nos sorrisos dos comerciantes, na baguete quente que perfuma a manhã. Ali, o tempo corre devagar, respeitando o compasso dos encontros e dos aromas.

Com a sacola recheada de iguarias locais — um queijo brie, um vinho da Borgonha, morangos de cor intensa – a caminhada seguiu naturalmente pela Rue de Montessuy, estreita e silenciosa, onde a torre de aço cresce a cada passo.

Caminhamos em silêncio cúmplice, guiados por sua silhueta inconfundível, até que o Champ de Mars se abriu como um respiro verde. Sob aquele céu, Santos Dumont fez história com seus voos de balão, desafiando o impossível diante dos olhares incrédulos da cidade. Hoje, o gramado abriga piqueniques, crianças correndo, casais enamorados — e aquele mesmo espírito de leveza e conquista ainda paira no ar.

Escolhemos, para nossa despedida, o Sorrentino Ristorante, um pequeno refúgio siciliano na Rue de Montessuy.

Com ambiente acolhedor, massas artesanais e um vinho que parecia resumir o espírito da viagem, foi o cenário perfeito para encerrar essa breve, mas inesquecível, travessia por Paris.

Au revoir. Mas não adeus — porque quem flana por Paris jamais parte por completo.

 

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