PENSAMENTO PLURAL Habeas Corpus: a última trincheira da liberdade, por Palmarí de Lucena

O habeas corpus é mais que um termo jurídico. É o último bastião contra o arbítrio. Em um mundo onde autoritarismos ressurgem disfarçados de ordem, sua supressão anuncia tempos sombrios. “Trump, ao flertar com sua revogação, revela o perigo de líderes que veem a democracia como obstáculo, então defender esse direito é preservar a liberdade que ancora a dignidade humana”, é o que postula o escritor Palmarí de Lucena em sua crônica. Confira íntegra…

“Onde quer que a liberdade seja ameaçada, o habeas corpus é a primeira sentinela a cair.”
Lord Denning, jurista britânico

Há palavras que carregam séculos de luta — e habeas corpus é uma delas. Em tempos de discursos exaltados, fronteiras em crise e tentativas de normalizar o autoritarismo, é preciso lembrar que esta expressão em latim, que significa literalmente “que tenhas o corpo”, é muito mais que uma fórmula jurídica: é o grito silencioso de quem resiste ao arbítrio.

O habeas corpus é a garantia de que ninguém será privado da liberdade sem uma razão legítima, sem acesso à Justiça, sem o direito de se defender. É o escudo do cidadão comum contra o poder que se excede — seja ele um governo, um juiz ou mesmo a voz rouca da maioria quando esquece da lei.

A história mostra o que acontece quando esse direito fundamental é abolido. Foi assim na Alemanha nazista, com Hitler, após o incêndio do Reichstag. Na União Soviética de Stalin, onde confissões forçadas suprimiram o direito à defesa. No Chile de Pinochet, na Argentina dos desaparecidos, no Brasil do AI-5, na China do presente. A supressão do habeas corpus é sempre o primeiro passo de uma estrada escura. Abre-se mão do direito em nome da ordem. Troca-se liberdade por obediência. E logo a democracia se torna fachada, a Justiça vira espetáculo, e o medo passa a reger as relações sociais.

Nos Estados Unidos, onde a Constituição limita sua suspensão a casos de rebelião ou invasão, a proposta recente da administração Trump de suprimir esse direito para acelerar deportações em massa escancarou o risco. A justificativa? Uma suposta “invasão” pela fronteira sul. Especialistas jurídicos reagiram com firmeza: seria inconstitucional e abriria um precedente sombrio. Mesmo assim, o debate aconteceu — e o alarme soou.

Sob Trump, não se tratou apenas de palavras. Centenas de venezuelanos, apontados como membros de gangues, foram enviados para prisões de segurança máxima em El Salvador, mesmo com ordens judiciais contrárias. Usou-se uma lei de 1798, concebida para tempos de guerra, para manobrar a Justiça como se fosse trincheira de conveniência.

A ameaça de Trump à democracia americana não se resume a declarações de efeito ou decisões administrativas questionáveis — ela se expressa na erosão metódica dos pilares do Estado de Direito. Ao atacar juízes, desacreditar o sistema eleitoral, incentivar a invasão do Capitólio e defender a imunidade presidencial mesmo diante de crimes, Trump deixa claro que vê a democracia como um obstáculo, não como um valor. Seu retorno ao poder, caso ocorra, traria consigo a promessa explícita de usar o aparato estatal para punir adversários, eliminar freios institucionais e governar por revanche. O habeas corpus, nesse cenário, seria apenas o primeiro a tombar.

Defender o habeas corpus é mais do que sustentar um artigo legal: é afirmar que a liberdade não é um presente do Estado, mas um direito do ser humano. Que o poder deve ser limitado. Que até o mais fraco — ou especialmente ele — tem o direito de ser ouvido.

Enquanto houver habeas corpus, há esperança. E onde ele falta, a prisão é só a parte visível de um sistema que já algemou a alma da sociedade.

 

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