PENSAMENTO PLURAL Barril de porco e emendas: dois mundos, uma mesma política, por Palmarí de Lucena

Em sua crônica, o escritor Palmarí de Lucena afirma como, “nos bastidores da política, o barril de porco americano e as emendas brasileiras revelam um vício comum: transformar orçamento em moeda de troca”. Nos EUA, o clientelismo é limitado e visível; no Brasil, tornou-se um sistema paralelo, opaco e corrosivo. “Quando o Parlamento vira balcão, o preço pago é a própria saúde da democracia”, pontua. Confira íntegra…

Há expressões políticas que, mesmo nascendo em diferentes idiomas, traduzem a mesma lógica: garantir apoio político com o tilintar sedutor do dinheiro público. Pork barrel, nos Estados Unidos, e emendas parlamentares, no Brasil, são exemplos dessa semelhança inquietante. Muda a língua, o sotaque e o nome, mas o enredo é o mesmo: transformar o orçamento nacional em moeda de troca.

O termo americano, que evoca a imagem de um barril cheio de carne suína distribuída entre aliados, tem raízes no século XIX, quando senadores e deputados conseguiam projetos vantajosos para seus redutos eleitorais. A ponte que ligava o nada a lugar algum, o museu temático de um estado sem turistas, ou a represa sem rio — tudo podia virar obra de prestígio desde que garantisse votos na próxima eleição. O nome é grotesco, mas a prática se institucionalizou. Após escândalos e críticas, os earmarks — como são chamados oficialmente — foram abolidos em 2011 e voltaram, mais moderados e com regras de transparência, em 2021. Hoje, representam menos de 1% do orçamento federal.

Já no Brasil, o mecanismo das emendas é menos caricatural e mais refinado — porém, muito mais perigoso. Aqui, não se trata de um barril, mas de uma torneira aberta. Deputados e senadores podem destinar verbas diretamente para obras e serviços em suas bases, o que seria legítimo, não fosse o uso distorcido e, muitas vezes, obscuro da prática. Desde que as emendas individuais se tornaram impositivas, e as chamadas emendas do relator (RP9) se espalharam feito nevoeiro espesso sobre o orçamento federal, o que era exceção virou regra: negociar apoio ao Executivo em troca de bilhões canalizados sem critério técnico ou transparência pública.

Se nos Estados Unidos o pork barrel virou sinônimo de gasto questionável, no Brasil as emendas parlamentares — sobretudo as RP9 — passaram a configurar um orçamento paralelo, tão poderoso quanto informal. Parlamentares com mais influência recebem quantias desproporcionais. Obras fantasmas, tratores superfaturados, recursos desviados: o clientelismo deixou de ser disfarce para se tornar método.

Enquanto nos Estados Unidos discute-se o equilíbrio entre representação local e interesse nacional, no Brasil essa balança já tombou. O Congresso tornou-se um distribuidor de recursos opacos, e a governabilidade passou a depender do fluxo dessas emendas, não de um projeto de país.

No plano institucional, o impacto é devastador: enfraquece a separação de poderes, desidrata a autoridade técnica do Executivo e confina o Parlamento a um balcão de negócios, onde se trocam votos por fatias do Orçamento, favores por cargos, silêncio por vantagens. A lógica republicana, que pressupõe fiscalização mútua e independência entre os poderes, dissolve-se na promiscuidade das barganhas. Ao invés de legislar com visão de Estado, o Parlamento brasileiro transformou-se em um consórcio de interesses privados disfarçados de políticas públicas. E quando o poder se curva à chantagem disfarçada de negociação, o que se compromete não é apenas a ética, mas a própria democracia.

 

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