PENSAMENTO PLURAL A Justiça na mira do poder, por Palmarí de Lucena

A nova cruzada contra tribunais internacionais revela mais do que desprezo por regras: escancara um projeto de dominação que repele limites e instrumentaliza a soberania, alerta o escritor Palmarí de Lucena, em seu comentário. “Com sanções, pressões veladas e redes de apoio extremistas, o trumpismo global tenta calar a justiça, e quando os juízes viram alvo, o que está em jogo não é a política — é o próprio Estado de Direito”, pontua. Confira íntegra…

Na arquitetura frágil do direito internacional, há pilares que sustentam uma promessa de justiça para além das fronteiras nacionais. Mas quando essas colunas começam a incomodar os poderosos, não é raro que venham abaixo — não por abalos naturais, mas por demolições políticas. Foi o que se viu, mais uma vez, com a decisão do governo Trump de sancionar quatro juízes do Tribunal Penal Internacional (TPI) que ousaram autorizar investigações sobre crimes de guerra cometidos por Israel em Gaza e na Cisjordânia.

O gesto foi calculado. Os alvos, simbólicos. Reine Alapini-Gansou, de Benin, participou da decisão que expediu o mandado de prisão contra Benjamin Netanyahu. Luz del Carmen Ibáñez Carranza, do Peru, e Solomy Balungi Bossa, de Uganda, atuaram em recursos sensíveis envolvendo Israel. Beti Hohler, da Eslovênia, enfrentou objeções por seu passado na promotoria do tribunal. Nenhum desses nomes representa ameaça militar ou risco real à segurança dos Estados Unidos. Mas, para Washington, a justiça que atravessa fronteiras é uma afronta quando se volta contra aliados ou interesses próprios.

A retórica da soberania, tão usada por Washington para rejeitar a jurisdição de cortes internacionais, ganha contornos seletivos: vale para proteger os seus, mas não impede que se interfira no funcionamento de outras justiças — nem que se imponha sanções àqueles que ousam contrariar a vontade da Casa Branca. O discurso da defesa nacional se transforma, nesse contexto, em escudo para a impunidade.

A ofensiva não se limita a Haia. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada em San José, também sentiu o bafo da desconfiança. Durante o governo Trump, os Estados Unidos reduziram seu apoio institucional ao órgão e contestaram decisões que tratavam de violações em território americano. O Brasil, por sua vez, seguiu o mesmo roteiro. Quando a Corte criticou ações policiais letais em comunidades periféricas ou apontou falhas na proteção de indígenas e jornalistas, ouviu como resposta acusações de “ingerência ideológica”. Em 2021, o então chanceler brasileiro sugeriu uma revisão do sistema interamericano, insinuando uma ruptura disfarçada de reforma.

Há uma coerência inquietante nesse movimento. Onde há tribunais que investigam poderosos, surgem vozes que os acusam de politização. Onde há tentativas de responsabilizar Estados por suas ações, floresce o discurso da vítima soberana. E onde há apelos por justiça, impõe-se o silêncio por meio de sanções, cortes de financiamento ou campanhas de deslegitimação.

Enquanto isso, decisões judiciais brasileiras que envolvem interesses de empresas americanas enfrentam pressões discretas, mas persistentes. Quando a Justiça do Brasil se atreve a impor limites a gigantes como Meta, Amazon ou ExxonMobil, não faltam alertas diplomáticos, lobbies legislativos e recados velados sobre o “clima para investimentos”. A soberania jurídica brasileira, tão invocada em discursos oficiais, parece negociável quando entra em conflito com capitais estrangeiros.

O que se vê, portanto, não é apenas uma disputa jurídica, mas um projeto político transnacional que instrumentaliza a justiça para proteger os fortes e intimidar os que ousam investigar. O trumpismo, em sua versão internacionalizada, articula uma rede de apoio formada por setores da extrema-direita — de Haia a Brasília — que repelem o multilateralismo, demonizam cortes independentes e operam como linha auxiliar da hegemonia americana. Não por convicção doutrinária, mas por conveniência geopolítica. E quando juízes, com coragem e isenção, tentam romper esse cerco, o que recebem de volta não é respeito à legalidade, mas o peso da retaliação. Nesse cenário, o Estado de Direito se torna incômodo — e, por isso mesmo, precisa ser vigiado, defendido e fortalecido.

 

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