Em mais um texto da série cartas apócrifas, o escritor Palmarí de Lucena produz texto em analisa a democracia sob a ótica de Tocqueville, destacando sua visão cultural e histórica. Diferente de Marx, Tocqueville valoriza instituições como expressões de valores compartilhados. “Ele relaciona democracia à secularização e propõe uma “religião civil” que une a sociedade, e sua preocupação central é como manter coesão social diante da pluralidade e da diversidade moderna”, observa o autor. Confira íntegra…
Brasília, em espírito, junho de 2025
Senhores representantes do povo brasileiro,
Escrevo-vos do recôndito da história, não para impor juízos, mas para compartilhar reflexões que a longa travessia da democracia exige de todos os que, como vós, se propõem a governar em nome do povo.
Aprendi, ao observar a jovem democracia norte-americana de meu tempo, que a essência da liberdade não repousa unicamente nas instituições ou na engenharia legal do Estado. A verdadeira democracia, senhores, nasce do solo invisível da cultura — dos costumes, das crenças, da moral compartilhada e da confiança mútua entre cidadãos.
Democracia não é apenas o voto, nem tampouco o ritual parlamentar. É, sobretudo, a capacidade de uma sociedade plural conviver com a diferença sem se fragmentar. Quando me perguntava “o que une um povo que não está mais submetido a Deus?”, não buscava retorno à teocracia, mas advertia sobre o vazio que pode surgir quando se perde a fé comum, seja ela religiosa ou cívica.
Vejo que em vossa pátria há pluralidade, há vozes diversas — mas percebo também uma ausência de cimento ideológico-cultural capaz de manter unida a estrutura democrática. Onde está o sentido comum da coletividade? Que valores partilham os representantes com os representados? Não pode haver república onde o interesse privado submerge o bem comum, nem liberdade onde o ressentimento substitui a fraternidade.
A secularização é inevitável, mas a desmoralização da vida pública é uma escolha. Democracia exige virtude. E virtude pública não é pregação moralista, é comportamento concreto: transparência, serviço e exemplo. O poder, em democracia, não é um direito de conquista, mas uma concessão frágil, renovável apenas pela confiança do povo.
Não esperem que o contrato social se sustente em abstrações. Ele precisa de rituais, de símbolos, de uma “religião civil” que celebre a convivência, a justiça, o respeito mútuo. Se não cultivarem essas bases culturais, vossas instituições ruirão como castelos sobre areia.
O futuro do Brasil democrático não depende de salvadores nem de salvaguardas legais. Depende daquilo que cada um de vós está disposto a sacrificar em favor do bem coletivo. Sem isso, a liberdade será apenas uma palavra esvaziada.
Com a consideração de quem vos observa com esperança e temor,
Alexis de Tocqueville
(1805–1859)
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