Na carta apócrifa do Príncipe de Salina aos gestores municipais, a pompa dos discursos é desmascarada como maquiagem sobre o abandono. Conforme pontua o escritor Palmarí de Lucena, denuncia-se a prática de anunciar revitalizações com festas, ignorando a ruína real. Governar, alerta o Gattopardo, não é pintar fachadas para selfies, mas restaurar com coragem o que apodrece por trás do palco. Confira íntegra…
Do solar adormecido de Donnafugata,
onde o passado observa o presente com sobrancelhas arqueadas,
Escrevo-vos, senhores prefeitos, gestores, vereadores e intérpretes modernos da velha ópera do poder local.
Sou Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina — também conhecido como Il Gattopardo, patrono daqueles que fingem reformar para não perturbar o essencial. E ao olhar para vossas administrações tropicais, reconheço o enredo: prometeis o novo com a mesma caneta com que renovais o atraso.
Vós vos orgulhais de “revitalizar” centros históricos com palcos e fogos de artifício. Contratam cantores, montam tendas, pintam fachadas às pressas. Mas, quando se apagam as luzes do show, o que resta? O telhado do sobrado colonial segue caindo. A casa-grande agora é estúdio de selfie. O povo que ali vive continua sem saneamento, sem segurança, sem dignidade.
Revitalizar, senhores, não é produzir evento — é devolver vida. E vida não nasce de drones e painéis de LED, mas de políticas que escutam o silêncio dos tijolos, das telhas, das árvores esquecidas — e das gentes invisíveis.
Transformastes o patrimônio histórico em cenário, e o cidadão em figurante. Ao invés de restaurar o casarão, preferis encobrir seus traços com lona colorida. Evitais o investimento sério em troca de festa rápida. Sois maestros da cosmética urbana — onde cada “revitalização” é um espetáculo e cada espetáculo, uma desculpa.
Seguis, ainda, a filosofia dos covardes administrativos:
“Se não está quebrado, não mexa.”
Mas a verdade é que tudo está rachado, só que vocês aprenderam a pendurar bandeirinhas nos escombros.
Cultivais também a chamada “negligência benéfica”: deixais o abandono prosperar até que o povo aceite o improviso como solução. E com isso, governais não pela esperança, mas pela exaustão do imaginário.
Digo-vos, com a frieza elegante de quem já viu dinastias ruírem: quem governa sem tocar o essencial, governa apenas a moldura do retrato. E um dia, até a moldura cai.
Querem ser lembrados como algo além de outdoors? Então, em vez de festa, façam memória. Em vez de anúncio, façam ação. Em vez de espetáculo, façam república.
Com a nobreza cética dos que não se iludem com slogans,
Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina
(Il Gattopardo, cronista dos que trocam o tempo por truques)
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