O escritor Palmarí de Lucena traz, em seu comentário, a informação de que, nos Estados Unidos, “o Executivo intensifica sua pressão sobre o Judiciário, utilizando meios legais para enfraquecê-lo internamente”. Nomeações estratégicas, processos contra juízes e tribunais, e tentativas de deslegitimação institucional representam uma erosão silenciosa da democracia. “A aparente legalidade esconde uma ofensiva que mina a independência dos árbitros constitucionais e compromete o equilíbrio entre os Poderes”, acrescenta. Confira íntegra…
Em qualquer democracia madura, o equilíbrio entre os Poderes é condição essencial para o funcionamento das instituições. Quando esse equilíbrio é tensionado — sobretudo de forma sistemática —, o sistema inteiro corre o risco de se desequilibrar. É exatamente isso que se observa, com crescente intensidade, no embate entre o Executivo e o Judiciário dos Estados Unidos nos últimos anos.
O que era inicialmente interpretado como retórica agressiva contra juízes e tribunais ganhou forma institucional. Indicações para cargos-chave no sistema judicial passaram a privilegiar aliados políticos ou críticos declarados do próprio Judiciário. Em paralelo, decisões contrárias à agenda presidencial vêm sendo publicamente desqualificadas, contestadas por vias administrativas e, em alguns casos, desobedecidas ou retardadas em sua implementação.
Essa estratégia vai além das palavras. Em situações inéditas, órgãos do Executivo passaram a acionar judicialmente tribunais inteiros ou a apresentar queixas formais contra magistrados cujas decisões contrariaram seus interesses. Ainda que dentro da legalidade, tal conduta representa uma inversão preocupante da lógica institucional: um Poder que, inconformado com os freios constitucionais, passa a instrumentalizar o próprio sistema para enfraquecê-lo desde dentro.
Não se trata aqui de discutir preferências ideológicas ou escolhas legítimas de governo, mas de identificar uma tendência mais ampla: a tentativa de reduzir a autonomia e a autoridade do Judiciário. A submissão da magistratura à lógica político-partidária mina o princípio da imparcialidade, fundamento essencial da confiança pública no sistema de Justiça.
Há um paradoxo revelador nessa conjuntura. Mesmo enquanto promove críticas e ações hostis contra o Judiciário, o Executivo segue utilizando os próprios tribunais como arenas para suas disputas. Por um lado, isso demonstra a resiliência institucional. Por outro, revela o esforço deliberado de reconfigurar o sistema a partir de dentro, preenchendo postos-chave com figuras alinhadas à sua visão de mundo.
Essa batalha silenciosa, conduzida sob o manto da legalidade, pode parecer menos ameaçadora do que uma ruptura autoritária explícita. No entanto, seu potencial corrosivo é igualmente grave. Quando a independência judicial é enfraquecida, abre-se caminho para um desequilíbrio estrutural entre os Poderes — e, com ele, o risco de um Executivo sem controle efetivo.
Respeitar o Judiciário não significa concordar com todas as suas decisões. Mas implica, no mínimo, reconhecer sua função constitucional como instância de equilíbrio. Quando essa função é vista como um obstáculo a ser eliminado, e não como um pilar da ordem democrática, o sistema começa a falhar em sua essência.
A história americana já testemunhou momentos de tensão entre os Poderes. Mas a escala, o método e a constância da atual ofensiva contra o Judiciário configuram um teste inédito. A resposta a esse desafio não virá apenas dos tribunais. Ela dependerá também da vigilância da sociedade civil, da independência da imprensa, da integridade das universidades e da firmeza de todos aqueles que compreendem que a democracia não se esgota no voto, mas se sustenta no respeito às instituições.
Neste momento, preservar a integridade do Judiciário é preservar a integridade da própria democracia. Sem árbitros independentes, o jogo político deixa de ser democrático e passa a ser dominado pela imposição de força. A questão central não é de partido ou de ideologia, mas de princípio. E princípios não devem ser relativizados conforme as conveniências do momento.
Esse embate jurídico e institucional, travado dentro das regras, pode parecer civilizado, mas não é neutro. A judicialização política extrema — somada às tentativas de intimidação, deslegitimação e captura do Judiciário — lança dúvidas sobre a imparcialidade das decisões, enfraquece a confiança nas instituições e encoraja ofensivas futuras, possivelmente mais agressivas.
Essa inversão de papéis, na qual o governante se apresenta como vítima das normas legais, é talvez o aspecto mais perigoso de toda essa conjuntura. Não se trata apenas de um conflito entre Poderes. Trata-se da tentativa de reescrever as regras do jogo enquanto ele ainda está em andamento. A democracia americana segue em teste. E, como já alertaram vozes prudentes da história institucional, o maior risco não está apenas na ruptura abrupta — mas na erosão lenta, deliberada e persistente das bases que a sustentam.
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