Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena trata de como prisão da deputada Carla Zambelli expôs uma retórica recorrente que distorce decisões judiciais como atos de perseguição. “Assim como ocorre nos EUA com Donald Trump, parte da classe política brasileira tenta deslegitimar o Judiciário em nome de lealdades ideológicas. Quando a solidariedade substitui os fatos, a democracia é fragilizada por dentro, sob aplausos dissimulados”, afirma Palmarí. Confira íntegra...
A prisão da deputada Carla Zambelli (PL-SP), confirmada por autoridades italianas após ordem do ministro Alexandre de Moraes, causou comoção em parte do espectro político brasileiro. O episódio extrapolou o campo jurídico ao revelar, mais uma vez, o uso estratégico da retórica para enfraquecer a credibilidade das instituições democráticas. Em vez de se ater aos fatos — como a condenação por atentado aos sistemas do Conselho Nacional de Justiça —, parte do discurso público optou por narrativas que sugerem perseguição política, censura e ruptura institucional.
Ao manifestar solidariedade à parlamentar, um representante do Legislativo federal alegou que Zambelli teria se apresentado voluntariamente às autoridades italianas para solicitar asilo político. Classificou a medida como reação a um país que, supostamente, nega a seus eleitos o direito à liberdade e à defesa. O pronunciamento foi acompanhado por alegações difusas de censura a jornalistas, bloqueio de contas e outras medidas interpretadas como sinal de um Estado opressor em formação.
Essas afirmações não se sustentam juridicamente nem encontram respaldo na realidade factual. A deputada foi condenada após o devido processo legal por participação ativa em um ato considerado grave contra o Estado de Direito. Deixou o Brasil e fixou-se na Itália com passaporte europeu, onde passou a constar como foragida na lista da Interpol. A tentativa de disfarçar o descumprimento da lei como exercício de liberdade política não resiste ao escrutínio lógico nem à análise constitucional.
É nesse ponto que se desenha uma perigosa analogia com o que se observa nos Estados Unidos, onde o ex-presidente Donald Trump e seus aliados também ensaiam uma ofensiva contínua contra o Judiciário. Seja ao desafiar ordens judiciais, abrir investigações contra juízes, ou promover aliados que relativizam o cumprimento das leis, o que se vê é uma estratégia coordenada de deslegitimação do sistema judicial como forma de autoproteção política. No Brasil, discursos semelhantes encontram eco entre setores que almejam a substituição da legalidade por uma lealdade ideológica difusa.
É legítimo que parlamentares expressem opiniões — o pluralismo democrático assim exige. Mas quando essa manifestação pública distorce provas, relativiza crimes julgados e transforma decisões judiciais em instrumentos de perseguição, cruza-se uma linha perigosa. Nesse ponto, a solidariedade deixa de ser ato de empatia para se tornar ferramenta de desinformação.
Não há ruptura institucional quando a Justiça atua nos limites da Constituição. A ruptura, na verdade, ocorre quando autoridades eleitas decidem jogar contra o próprio sistema que juraram proteger — trocando os fatos por narrativas, o compromisso com a democracia por conveniências discursivas, e a verdade por simulacros ideológicos.
Ao mirar o Judiciário como inimigo, em vez de reconhecer sua função essencial como pilar da República, políticos — aqui e nos EUA — colocam em risco não apenas o equilíbrio entre os Poderes, mas o próprio conceito de liberdade que dizem defender. A retórica do desvio, em nome da “solidariedade”, torna-se, então, uma ameaça disfarçada à democracia.
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