PENSAMENTO PLURAL Brasília, a casa que virou palco do abuso e da contradição, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena enfatiza como “a recente obstrução no Congresso expôs uma grave crise ética e institucional, com parlamentares usando seus mandatos para proteger interesses pessoais e atacar a democracia”. Ainda para o autor, “a defesa do foro privilegiado evidencia hipocrisia e blindagem contra a justiça e é urgente resgatar a responsabilidade e a ética parlamentar para restaurar a confiança pública e garantir o pleno funcionamento das instituições democráticas”. Confira íntegra…

Nas últimas semanas, Brasília assistiu a um espetáculo triste e preocupante — o Congresso Nacional, templo da democracia representativa, transformou-se em palco de uma obstrução prolongada, orquestrada por parlamentares que decidiram rasgar o Regimento Interno das Casas, desrespeitar a Constituição e suspender o funcionamento das Mesas Diretoras por mais de trinta horas. Um gesto que não pode ser entendido senão como um atentado ao Estado Democrático de Direito e uma tentativa explícita de chantagem política.

Esses parlamentares, eleitos para representar o povo, preferiram colocar seus mandatos a serviço da impunidade de um ex-presidente, renunciando à responsabilidade que lhes foi confiada para blindar interesses particulares, em detrimento do interesse coletivo e do funcionamento institucional. Mais que um conflito político, foi um ataque à boa conduta parlamentar, um flagrante desrespeito às normas que regem a ética e a disciplina do Legislativo.

Mas a contradição não para aí. Enquanto se vangloriam de defender a liberdade de expressão, a justiça e a ordem — princípios que deveriam ser a alma da democracia — esses mesmos representantes agem como advogados de seus próprios privilégios. A defesa do foro privilegiado — ainda vigente e alvo de intensos debates — tem funcionado como uma blindagem que impede a responsabilização por atos cometidos no exercício do mandato, garantindo impunidade e dificultando o acesso da Justiça a parlamentares envolvidos em irregularidades.

O paradoxo é que esses mesmos parlamentares, enquanto usam seus mandatos para obstruir o Congresso e proteger interesses próprios, também fazem parte de um movimento para acabar com o foro privilegiado — não para fortalecer a justiça, mas para escapar do alcance do Supremo Tribunal Federal (STF) e transferir seus processos para tribunais estaduais, mais suscetíveis a influências políticas e pressões locais.

É grave imaginar que o mandato parlamentar, instrumento sagrado da soberania popular, tenha sido usado para proteger condutas incompatíveis, para esquivar-se da aplicação da lei e, em casos extremos, até para servir como agente de governos estrangeiros, em prejuízo aos interesses do Brasil. Tal prática contradiz frontalmente o compromisso ético e legal que deveria nortear a atuação dos legisladores.

Esse teatro de abusos, obstruções e defesas hipócritas cria um abismo entre o Parlamento e a sociedade, corroendo a confiança na política e fragilizando as instituições que deveriam garantir a estabilidade democrática. A democracia não se sustenta onde a liberdade é invocada para justificar o desrespeito às regras, nem onde a justiça é silenciada para proteger interesses particulares.

É urgente que os atores políticos recuperem o senso de responsabilidade, respeitem as normas regimentais e restabeleçam a ética parlamentar. Só assim o Congresso poderá voltar a ser o verdadeiro guardião da Constituição e o legítimo representante do povo brasileiro, em vez de palco para interesses obscuros e abusos de poder.

Porque, no fim das contas, a democracia exige coerência entre discurso e ação — e não pode sobreviver ao teatro do abuso e da contradição.

 

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