A democracia, mais do que um regime, é uma conversa infinita, uma reunião que nunca termina. É o postula o escritor Palmarí de Lucena em sua crônica. Quando se reduz o debate a rótulos — “comunista”, “fascista”, “identitário” — perde-se a substância e sobra apenas a caricatura. “Como lembrava Dewey, democracia é “modo de vida baseado na comunicação”. Só no plural, na escuta paciente e no diálogo aberto, ela se renova e permanece viva contra epitáfios apressados”, complementa. Confira íntegra...
A rotulagem política tornou-se um recurso banalizado, mas poderoso, para silenciar o debate democrático. Em lugar de ideias, circulam etiquetas que pretendem definir tudo e todos em uma única palavra: “comunista”, “fascista”, “globalista”, “identitário”. São rótulos que funcionam como armas retóricas de curto alcance, eficazes no imediatismo das redes sociais, mas incapazes de sustentar uma conversa madura sobre projetos de país. Como observou Tocqueville, “a saúde da democracia depende da força moral que se manifesta no debate público”. Hoje, porém, o espaço do debate é tomado por manchetes de impacto, memes e insultos.
A filosofia política sempre nos lembrou que a democracia não é um estado de repouso, mas um movimento contínuo. John Dewey escreveu que “a democracia é mais do que uma forma de governo: é um modo de vida baseado na comunicação”. Em outras palavras, trata-se de uma reunião que nunca se encerra — um diálogo permanente, que só se mantém vivo quando há disposição para ouvir, refutar e reconstruir. O problema é que, no Brasil e no mundo, essa reunião tem sido substituída por uma disputa de microfones, onde quem grita mais alto parece prevalecer, mas apenas gera mais ruído.
O cenário atual expõe a fragilidade desse atalho. No Brasil, vemos partidos e lideranças presos a rótulos: uns tentam sobreviver colando a pecha de “identitária” em qualquer agenda de direitos civis; outros reagem tachando adversários de “fascistas”. O resultado é a incapacidade de discutir políticas públicas de forma consequente — educação, saúde, desigualdade, sustentabilidade — porque antes de qualquer análise já se decretou a identidade do interlocutor. No plano global, a retórica segue o mesmo caminho: Donald Trump insiste em simplificar a política em slogans nacionalistas; na Europa, cresce a tendência de reduzir debates complexos a dicotomias simplistas entre “patriotas” e “globalistas”. Essa pobreza de linguagem cria uma pobreza de pensamento.
Hannah Arendt advertiu que “a política se baseia na pluralidade dos homens”. Rotular é justamente o contrário: é negar a pluralidade, é impor uma caricatura que elimina nuances. Quando se insiste nessa lógica, a democracia se transforma em espetáculo, e não em convivência. O risco é evidente: sem o trabalho lento e paciente da escuta e da argumentação, o espaço democrático se torna refém de paixões imediatas e de líderes que prosperam no caos comunicativo.
É urgente lembrar que democracia não é a vitória de um rótulo sobre o outro, mas a construção inacabada de um espaço comum. Como afirmou Amartya Sen, “a democracia é, sobretudo, a liberdade de raciocinar publicamente”. Raciocinar exige tempo, exige argumentos, exige coragem para abandonar certezas fáceis. A democracia é, enfim, um projeto civilizatório que não se encerra em eleições, mas se renova no cotidiano, nas ruas, nas instituições, nas conversas.
Enquanto insistirmos em reduzir a política a caricaturas, continuaremos empobrecendo a vida pública. O caminho de volta ao verdadeiro debate é longo, mas indispensável. Porque, como lembrou Lincoln, “a melhor forma de prever o futuro é criá-lo”. E só criaremos um futuro democrático se aceitarmos que essa reunião — interminável, difícil, às vezes exaustiva — é a própria essência da liberdade.
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