Em 1955, quando o Brasil beirava o abismo do golpismo contra a posse de Juscelino, o general Henrique Lott ergueu-se como guardião da legalidade. Sua farda não serviu de pretexto para usurpar o poder, mas de escudo para proteger a urna e a Constituição. Diferente de militares que traíram o juramento e hoje pedem anistia, Lott demonstrou que a verdadeira lealdade das armas é à democracia e à soberania popular. Confira íntegra do comentário do escritor Palmarí de Lucena…
Há momentos na história em que o destino de uma nação repousa em um fio tão tênue quanto a respiração de um enfermo. O Brasil de 1955 era esse corpo febril, entre a promessa de Juscelino Kubitschek e o fantasma dos golpes que rondavam os corredores do poder. Nesse cenário, ergueu-se a figura inesperada de um guardião: o general Henrique Teixeira Lott.
Lott não se destacou pelo brilho da oratória nem pela astúcia política. Era homem de compostura severa, um militar que preferia a disciplina das fileiras ao palco das intrigas. Mas foi justamente essa fidelidade à ordem que o levou a escrever um dos capítulos mais luminosos da democracia brasileira.
Naquele novembro turbulento, quando Carlos Luz tramava atalhos para impedir a posse do presidente eleito, o país caminhava para um abismo. Foi então que o general, como sentinela que vigia a madrugada, decidiu agir. Não para tomar o poder, mas para devolvê-lo ao seu legítimo dono: o povo que havia votado. Seu gesto ficou conhecido como o contragolpe de 11 de novembro, mas talvez devesse ser lembrado como a noite em que a farda protegeu a urna.
Há uma poesia amarga nesse episódio. Num país onde tantas vezes os quartéis se tornaram berço de rupturas, um general escolheu ser o muro de contenção contra a maré autoritária. Lott entendeu que a pátria não é feita apenas de território, mas também de confiança: a confiança de que a palavra escrita na cédula terá peso maior do que a palavra sussurrada nos conluios do poder.
Esse gesto ganha ainda mais relevo quando se observa o espelho do presente. Ao lado de Lott, outros militares também compreenderam que a farda não lhes dava licença para trair a democracia, mas os obrigava a defendê-la. Foram vozes dissonantes, muitas vezes esquecidas, mas que compuseram uma tradição de legalidade. Em contrapartida, há os que trilharam o caminho oposto: oficiais que se deixaram seduzir por extremistas e participaram de conspirações recentes para negar a posse ao presidente eleito pelo voto popular. Hoje, sentam-se no banco dos réus da História — e, em alguns casos, no dos tribunais — por terem ousado quebrar o ciclo democrático da alternância de poder.
E, entre os que não chegaram ao banco dos réus, encontram-se aqueles que usaram a farda como amuleto eleitoreiro, esquecendo que juraram fidelidade à pátria, à Constituição e à hierarquia. Tornaram-se defensores de figuras que deliberadamente atentaram contra o Estado democrático de direito. Ao falharem em cumprir seus juramentos, transformaram-se em claque política de ocasião. E hoje clamam por anistia aos que conspiraram contra a democracia e, em nome de conveniências imediatistas, lapidaram a Constituição do Brasil como se fosse pedra descartável.
A lição é clara: enquanto alguns enxergam na farda um dever de tutela sobre a nação, outros, como Lott, a vestem como armadura para proteger o pacto democrático. É essa diferença que separa o guardião do conspirador, o defensor da urna do inimigo da cidadania.
Se a democracia brasileira chegou, com todas as suas cicatrizes, até nós, deve parte de sua sobrevida àquela decisão de novembro. Lott foi como o guarda-livros que, em vez de rasgar os registros, os protegeu com zelo silencioso. Um militar que, ao invés de marchar contra a vontade popular, marchou ao lado dela.
Hoje, quando a tentação de atalhos e rupturas ainda ronda o horizonte, recordar a figura desse general é recordar que a democracia se defende não apenas em discursos inflamados ou nas praças abertas, mas também no íntimo de consciências que se recusam a trair o essencial.
Henrique Teixeira Lott não foi herói de bronze, mas guardião de princípios. Um homem que, diante do perigo, lembrou ao Brasil que as fardas podem, sim, resguardar a delicadeza da democracia — essa chama que se apaga fácil, mas que, naquela noite de novembro, ardeu inteira sob sua guarda.
Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.