PENSAMENTO PLURAL Comparações odiosas, apologias e a memória da Ditadura, por Palmarí de Lucena

Cervantes já dizia: toda comparação é odiosa. “Nada revela mais cinismo do que igualar o julgamento dos golpistas de 8 de janeiro ao de Jesus”, afirma o escritor Palmarí de Lucena, para quem “Cristo foi condenado sem defesa; os golpistas tiveram amplo contraditório”. Políticos que hoje falam em “perseguição” a Bolsonaro jamais protestaram contra a tortura na ditadura, chegando alguns a exaltar Ustra. Defender a democracia exige memória e verdade, não distorções convenientes. Confira íntegra…

Dizia Cervantes, com sua ironia imortal, que “toda comparação é odiosa”. Ainda assim, há quem insista em equiparar o julgamento dos golpistas de 8 de janeiro ao de Jesus Cristo. É um paralelo que não resiste a dois minutos de reflexão: Cristo foi condenado sem defesa, submetido à farsa de um julgamento político, sacrificado como bode expiatório. Já os réus que investiram contra a democracia brasileira tiveram advogados constituídos, acesso a todos os autos, direito ao contraditório e ao duplo grau de jurisdição, com sessões transmitidas em tempo real.

Comparar essas realidades é distorcer a história. É invocar a figura de um mártir para blindar quem atentou contra a ordem constitucional. Não há nada de redentor em depredar instituições públicas, tentar derrubar um governo recém-empossado e clamar por uma quartelada. Essa retórica busca converter crimes em heroísmo e, pior, corroer a confiança nas instituições encarregadas de fazer valer a Constituição.

Da mesma forma, é falaciosa a tese de que a violência política no Brasil é dirigida exclusivamente contra a direita. A história recente registra assassinatos, atentados e perseguições contra lideranças de diferentes matizes ideológicos. Fechar os olhos para os atentados sofridos por adversários ou para os mortos e desaparecidos da ditadura é uma escolha política: a escolha de relativizar a violência quando ela serve aos próprios interesses.

O caso do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores segue a mesma lógica. No aniversário de um ano dos ataques de 8 de janeiro em Brasília, o ex-ministro Aldo Rebelo contestou a classificação dos eventos como “golpe de Estado”, chamando-a de “fantasia” criada pelo PT para alimentar a polarização política. Mas como chamar de fantasia a invasão coordenada aos prédios dos Três Poderes, a destruição do patrimônio público, as ameaças de execução de parlamentares e ministros? Ao negar o óbvio, muitos políticos se prestam a um papel perigoso: tornam-se apologistas de um movimento que tentou rasgar a Constituição.

Não menos grave é a contradição de quem hoje brada contra a “injustiça” de um julgamento conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, mas que jamais se ergueu contra as violências sistemáticas do regime militar, nem ousou condenar torturadores que ficaram impunes — alguns, como o coronel Ustra, chegaram a ser exaltados em tribunas oficiais. Que compromisso democrático pode haver naqueles que relativizam a tortura, a censura e a cassação de direitos, mas enxergam “ditadura” na atuação de um tribunal constitucional que garante defesa, publicidade e recursos a quem tenta subverter a ordem?

A democracia não é um biombo para proteger projetos pessoais de poder. Ela é, antes de tudo, um pacto de regras, um espaço de disputa civilizada em que ninguém — por mais votos que tenha recebido — está acima da lei. O verdadeiro atentado não está em punir quem atacou a República, mas em fingir que tais ataques nunca existiram. A mentira, o falseamento da história e a lógica circular não são apenas erros de interpretação: são instrumentos de destruição institucional.

E aqui está o ponto central: quem recorre a comparações odiosas, quem chama de “fantasia” um golpe transmitido ao vivo, quem silencia diante da memória das vítimas da ditadura, mas se indigna com a responsabilização de golpistas de hoje, precisa responder por qual democracia realmente está disposto a lutar. Porque democracia sem verdade, sem memória e sem responsabilidade não é democracia — é apenas o álibi de quem teme perder privilégios.

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.