PENSAMENTO PLURAL Violência política: o avanço de um mal silencioso, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena pondera como “a escalada da violência política no Brasil reflete um fenômeno global: a intolerância, convertida em arma contra a democracia”. De Marcelo Arruda a Elisane Santos, prefeitos e militantes, a lista de vítimas se soma a episódios nos EUA, como o ataque a Paul Pelosi, a morte de Melissa Hortman e a tentativa contra Trump. “A política deixa de ser disputa de ideias e vira guerra — ameaça que corrói instituições e silencia comunidades inteiras”, diz. Confira íntegra…

A democracia brasileira convive, há anos, com uma chaga que insiste em crescer: a violência política. Os números falam por si. Em 2020, eram pouco mais de duas centenas de ocorrências; em 2022, no calor das eleições gerais, o volume aumentou. Já em 2024, o quadro tornou-se alarmante: mais de 500 casos registrados e até 76 assassinatos, segundo diferentes levantamentos. O país assiste, perplexo, a candidatos, vereadores, prefeitos e militantes tombarem em meio à disputa pelo poder.

Esse avanço não é mero acaso. Ele reflete um caldo de polarização, intolerância e banalização da violência que se fortaleceu desde os anos de Jair Bolsonaro e não encontrou freio mesmo com a mudança de governo. A política, que deveria ser o espaço da palavra, do diálogo e da negociação, tem sido invadida pelo barulho das armas e pela lógica do inimigo. Eleições municipais e gerais, que deveriam renovar esperanças, viram terreno fértil para ameaças, perseguições e mortes.

Os exemplos se acumulam. Em 2022, Marcelo Arruda, tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, foi morto a tiros em sua festa de aniversário por um apoiador de Bolsonaro — um crime que expôs a dimensão da intolerância política no país. Em 2024, o prefeito Marcelo Oliveira, de João Dias (RN), caiu sob o fogo das armas em plena campanha, junto com o pai, revelando que a disputa local também se tornou campo minado. Pouco depois, Zaqueu Fernandes Balieiro, candidato em Minas Gerais ligado ao MST, foi assassinado em circunstâncias igualmente brutais. E em junho de 2025, a vereadora Elisane Santos, do PT de Formigueiro (RS), foi executada a facadas, chocando pela frieza e pela fragilidade da proteção a que tinha direito.

Essa violência, contudo, não é exclusividade brasileira. O reflexo internacional é evidente. Nos Estados Unidos, em outubro de 2022, Paul Pelosi, marido da então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, foi atacado dentro de casa por um extremista armado com um martelo que gritava “Onde está Nancy?”. O agressor pretendia sequestrá-la, influenciado por teorias conspiratórias como o QAnon, e fraturou o crânio de Paul. 

Em julho de 2024, Donald Trump sobreviveu a uma tentativa de assassinato em comício na Pensilvânia, que deixou mortos e feridos. Em junho de 2025, Melissa Hortman, ex-líder democrata na Câmara de Minnesota, foi morta em casa junto ao marido em um crime reconhecido como politicamente motivado. Poucos meses depois, em setembro do mesmo ano, o ativista conservador Charlie Kirk tombou a tiros durante um evento em Utah. À esquerda e à direita, figuras públicas se tornaram alvos, e o país que se apresenta como farol democrático revelou também viver sob as sombras do extremismo.

O paralelo é inevitável. O assalto ao Capitólio em 2021 teve seu espelho tropical na invasão da Praça dos Três Poderes em 2023. O ataque ao marido de Nancy Pelosi ecoa nas ameaças sofridas por familiares de políticos brasileiros. O que se vê é a circulação de ideias de descrédito eleitoral, discursos que desumanizam adversários e estimulam a violência, atravessando fronteiras e redes sociais. Quando líderes tratam rivais como inimigos e transformam a política em guerra santa, seguidores se sentem autorizados a empunhar armas, aqui ou lá fora.

Há ainda uma desigualdade que não pode ser ignorada. No Brasil, as vítimas mais frequentes são lideranças locais, candidatas mulheres, militantes de comunidades rurais ou indígenas — vozes que não contam com segurança nem aparato institucional. Cada morte é a interrupção de uma luta coletiva e o silenciamento de comunidades inteiras. Nos Estados Unidos, embora as vítimas sejam figuras públicas de maior projeção, o efeito é semelhante: medo, retração e fragilização do debate público.

A democracia não sobrevive sem disputa política, mas tampouco resiste quando essa disputa se converte em guerra. É urgente fortalecer mecanismos de proteção, punir exemplarmente crimes de motivação política e cultivar uma cultura de tolerância. Não basta contabilizar mortos e agressores; é preciso resgatar o sentido da política como espaço de convivência. Brasil e Estados Unidos, apesar de trajetórias distintas, compartilham um desafio comum: não normalizar a barbárie em nome de eleições.

 

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