Entre Calderón e Brecht, a encruzilhada é clara: viver como se tudo fosse sonho ou assumir a dureza dos fuzis. Calderón ensina prudência diante da ilusão; Brecht exige coragem diante do horror. Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena, ora na Islândia, afirma como “hoje, entre redes sociais que fabricam realidades e crises que batem à porta, não há refúgio possível. A vida cobra escolhas: sonhar como se fosse eterna, agir como se o amanhã não viesse”. Confira íntegra…
No barroco espanhol, Calderón de la Barca ergueu sua obra-prima La vida es sueño. O príncipe Segismundo, aprisionado por uma profecia que o destinava à tirania, é libertado por um instante apenas para confirmar os temores paternos: entrega-se à violência e ao abuso do poder. Retorna à prisão, convencido de que sua breve experiência foi apenas um sonho. A parábola de Calderón sugere uma lição paradoxal: mesmo que a vida não passe de uma ilusão fugaz, é no sonho que devemos agir como se tudo fosse eterno, escolhendo a justiça acima da violência.
Três séculos mais tarde, em meio às ruínas da Guerra Civil Espanhola, Bertolt Brecht escreveu Os fuzis da senhora Carrar. O palco já não é o da realeza barroca, mas o da miséria popular. Carrar, uma mãe que tenta preservar os filhos, deseja guardar os fuzis para afastá-los da guerra. Porém, o conflito a engole. Ao perder um filho, percebe que não há neutralidade possível diante do fascismo: entregar-se à passividade é colaborar com a opressão. Brecht rompe a cortina da ilusão para afirmar que viver é escolher — e que não escolher já é, em si, uma decisão política.
Essas duas obras, tão distantes no tempo e na forma, dialogam com o presente de modo inquietante. Vivemos hoje entre os sonhos de Calderón e os fuzis de Brecht. O sonho, no século XXI, já não é apenas metáfora barroca: é a virtualidade das redes sociais, é a fabricação de realidades paralelas, é o poder de algoritmos que constroem narrativas convenientes. Como Segismundo, muitas vezes acreditamos que tudo não passa de ilusão: a corrupção, a desigualdade, as guerras transmitidas em tempo real parecem acontecer em outro palco, longe da nossa vida concreta. A tentação é viver como se tudo fosse espetáculo efêmero, onde não há responsabilidade individual.
Mas a realidade, com seus fuzis, nos chama à porta. A invasão da Ucrânia pela Rússia, os bombardeios na Faixa de Gaza, o avanço das ditaduras digitais, a crise climática que devora continentes: eis os fuzis que nos lembram que não existe refúgio privado quando o mundo arde. Como Carrar, podemos desejar apenas proteger os nossos, fechar a janela e rezar para que a tempestade passe. Mas, como nos mostrou Brecht, a omissão é cumplicidade. Não se trata de pegar em armas, mas de assumir responsabilidade diante da injustiça — seja nas urnas, nas ruas, na crítica ou no simples gesto de recusar a indiferença.
Calderón e Brecht, cada um à sua maneira, ensinam que a vida exige escolhas. Calderón nos alerta contra a arrogância: mesmo que a vida seja sonho, devemos agir com prudência e ética, porque o despertar é sempre incerto. Brecht, por sua vez, nos exige coragem: quando o mundo é atravessado pelo horror, guardar os fuzis não é neutralidade, mas rendição.
Hoje, quando a democracia é corroída por dentro, quando discursos de ódio se disfarçam de liberdade e quando a catástrofe ambiental avança apesar dos alertas da ciência, o que resta é confrontar a pergunta que une o príncipe barroco e a mãe proletária: o que faremos com a vida que nos foi dada? Sonhar como se fosse eterna, agir como se não houvesse amanhã.
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