PENSAMENTO PLURAL Entre o dólar e o yuan: qual o lugar do real na nova ordem monetária?, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena, ora na Islândia, afirma como a supremacia do dólar começa a dar sinais de desgaste, abrindo espaço para a ascensão do yuan. “A China, mais cautelosa após a experiência de 2015, ampliou o uso de sua moeda em comércio, crédito e sistemas próprios como o CIPS e o e-CNY. No BRICS, o Brasil já firmou acordos para transações em real e yuan”, diz. O desafio brasileiro será equilibrar a diversificação cambial com a preservação da confiança no real. Confira íntegra…

O sistema financeiro internacional vive uma transformação silenciosa, mas profunda. Desde a Segunda Guerra, o dólar americano reina como moeda de referência global, concentrando cerca de metade das transações internacionais e mais da metade das reservas oficiais dos bancos centrais. Esse domínio, porém, já não é inquestionável. Déficits fiscais crescentes, disputas políticas internas e tensões externas colocam em dúvida a solidez de longo prazo da moeda americana, que em 2025 acumula uma queda próxima de 7% no índice ponderado pelo comércio — o pior início de ano em mais de cinco décadas.

É nesse espaço de incerteza que a China enxerga uma oportunidade. O renminbi, também conhecido como yuan, atingiu recentemente seu maior valor desde a reeleição de Donald Trump em 2024. Investidores estrangeiros têm direcionado recursos ao país, e governos buscam alternativas ao dólar para reduzir sua vulnerabilidade. A estratégia chinesa não começou agora: já em 2009 Pequim ensaiava uma abertura de capitais, suspensa após a turbulência de 2015. Hoje, o movimento volta mais cuidadoso, mas consistente. Mais de 30% do comércio externo chinês já é liquidado em yuans — contra 14% em 2019 —, e a participação da moeda nos pagamentos internacionais atingiu 4%, ainda distante da supremacia americana, mas em nítida ascensão.

A ofensiva inclui instrumentos próprios. O sistema CIPS, que funciona como alternativa ao SWIFT, conecta mais de 1.700 bancos em 33 países e movimentou 175 trilhões de yuans em 2024. A moeda digital chinesa, o e-CNY, começa a ser usada em transações transfronteiriças, inclusive por empresas em regiões sob sanções. Além disso, o Banco Popular da China estabeleceu linhas de swap cambial que somam 4,5 trilhões de yuans (cerca de 630 bilhões de dólares) com mais de 30 bancos centrais, criando um colchão de liquidez que rivaliza com o do FMI.

O BRICS tornou-se o laboratório dessa virada. A Rússia, após as sanções de 2022, passou a denominar quase todos os seus novos empréstimos externos em yuan. A Hungria emitiu 5 bilhões de yuans em “panda bonds” em 2024, e o Brasil firmou acordos com a China para permitir transações diretas em reais e yuans, sem a intermediação do dólar. Um banco de compensação do ICBC em São Paulo promete reduzir custos cambiais e ampliar a presença da moeda chinesa no comércio bilateral. Há ainda discussões sobre emitir parte da dívida brasileira em yuan, algo inédito em escala relevante.

Para o Brasil, esse processo abre horizontes e dilemas. De um lado, a possibilidade de diversificar reservas e reduzir a dependência do dólar pode oferecer maior estabilidade e ganhos às exportações de commodities. De outro, a aposta no yuan envolve riscos: trata-se de uma moeda ainda pouco usada globalmente e sujeita ao controle rígido do Estado chinês.

A posição do real, portanto, não se definirá apenas pelo avanço do yuan ou pela resiliência do dólar, mas pela capacidade do próprio país de fortalecer suas instituições, manter disciplina fiscal e inspirar confiança. Num mundo cada vez mais multipolar, a pergunta que ecoa é inevitável: diante das forças do dólar e do yuan, o Brasil buscará apenas acompanhar o fluxo ou ousará dar ao real um papel mais ativo na cena global?

 

Os textos publicados nesta seção “Pensamento Plural” são de responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Blog.