PENSAMENTO PLURAL Parlamento: entre a lição islandesa e a loja de conveniência brasileira, por Palmarí de Lucena

Em sua crônica de viagem, o escritor Palmarí de Lucena observa como, na Islândia, o Althingi (parlamento) resiste há séculos como espaço de diálogo e proximidade entre governantes e cidadãos. Já no Brasil, o Congresso se converteu em loja de conveniência, onde barganhas por verbas, cargos e blindagens substituem o interesse público. “Ao negociar o futuro como mercadoria, fragiliza a democracia e se distancia do povo, revelando um contraste doloroso e uma advertência urgente”, diz. Confira íntegra...

Na Islândia, a democracia não se exibe em monumentos imponentes, mas na persistência de um parlamento que atravessa séculos. O Althingi, criado em 930, é o mais antigo em funcionamento contínuo no mundo. Sobreviveu a invasões, crises econômicas e mudanças sociais profundas porque nunca deixou de ser, antes de tudo, um espaço de diálogo. Governar ali não significa impor, mas negociar; não é monopólio, mas partilha.

Nenhum partido governa sozinho. O parlamentarismo islandês exige a formação de coalizões que não se resumem a arranjos de ocasião, mas a pactos programáticos. Essa prática confere ao sistema uma plasticidade rara: em momentos de crise, como o colapso financeiro de 2008, o parlamento soube se recompor, ouvir a voz das ruas e responsabilizar culpados. O povo não foi espectador, mas protagonista de sua própria história democrática.

Essa ligação direta entre representantes e representados explica a vitalidade do modelo. Na Islândia, os parlamentares caminham nas mesmas ruas que os cidadãos, enfrentam os mesmos desafios cotidianos e, em grande medida, partilham dos mesmos horizontes. Essa proximidade impede que a política se transforme em ritual distante: ela é vida comum organizada, não espetáculo remoto.

No Brasil, o contraste é doloroso. Nosso Congresso, em vez de atuar como caixa de ressonância da sociedade, tornou-se, em grande medida, uma loja de conveniência a serviço de parlamentares e seus acólitos. Ali, negocia-se de tudo: verbas, emendas, cargos, blindagens. Negocia-se, sobretudo, o futuro do país como se fosse mercadoria barata. O que deveria ser fórum de interesse público se converte em balcão de interesses privados.

Talvez o episódio mais estarrecedor dessa degradação seja a tentativa de transformar a anistia para envolvidos em conspirações e ataques ao Estado Democrático de Direito em pauta legislativa legítima. Não se trata apenas de cinismo, mas de um desprezo aberto pelo pacto social que sustenta a democracia. É o retrato cru de um parlamento que, em vez de proteger as instituições, as utiliza como escudo para seus próprios interesses.

A comparação é inevitável. Enquanto o Althingi se sustenta pela proximidade entre governantes e governados, o parlamento brasileiro distancia-se de sua base, tornando-se refém de negociações que fragilizam a própria democracia. Em vez de pontes, ergue muros; em vez de dialogar, transaciona. A lição islandesa, nesse contexto, ressoa como advertência: sem a conexão vital entre povo e instituições, a democracia não passa de promessa.

Ao observar o Althingi, percebe-se que a sustentabilidade democrática não nasce de fórmulas abstratas, mas da prática cotidiana de ouvir, negociar e responder. É nesse temperamento — sereno, mas firme; flexível, mas responsável — que repousa a lição mais duradoura da Islândia ao mundo: a democracia só respira quando o parlamento é, de fato, a voz de seu povo.

 

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