O escritor Palmarí de Lucena chama atenção, em seu comentário, para o fato de que o Sudão enfrenta hoje o que a ONU considera a pior crise humanitária do planeta: fome, deslocamentos em massa e massacres que já vitimaram mais de 400 mil pessoas. Apesar de reconhecerem o genocídio, Estados Unidos, União Europeia e União Africana permanecem paralisados, enquanto potências regionais alimentam a guerra. “A omissão, em Gaza e no Sudão, expõe a hipocrisia internacional: quando as vítimas são africanas ou árabes, prevalece o silêncio”, diz. Confira íntegra…
Enquanto o debate internacional se inflama em torno das acusações de genocídio em Gaza, há outro lugar onde democratas e republicanos nos Estados Unidos parecem concordar: o Sudão. Todos reconhecem que um genocídio está em curso — mas preferem ignorá-lo.
O Sudão vive hoje, segundo a ONU, a pior crise humanitária do planeta. A fome foi oficialmente declarada no ano passado, com 25 milhões em risco de desnutrição extrema e pelo menos 12 milhões obrigados a abandonar suas casas pela guerra civil. Estimativas já apontam para mais de 400 mil mortos.
Em janeiro, o governo Biden classificou a violência como genocídio. Em abril, a administração Trump confirmou a mesma posição. Há consenso bipartidário em Washington: o Sudão sofre genocídio e fome. E há também consenso em não agir. Biden foi passivo, e Trump, além de seguir na mesma linha, reduziu a ajuda, ampliando o risco de inanição, sobretudo entre crianças.
Não se trata de escolher entre Gaza e Sudão. É possível, e moralmente necessário, reconhecer a gravidade de ambos. Mas quando as vítimas são africanas ou árabes, o mundo relativiza. Em Gaza, a disputa política global obscurece o sofrimento humano. No Sudão, a distância geográfica e o racismo estrutural internacional transformam um genocídio em tragédia invisível. Em ambos, a cegueira deliberada se impõe como prática diplomática.
A indiferença é global. Países árabes e africanos, em vez de aliviar a tragédia, a agravam. A ONU, que em 2005 proclamou a “responsabilidade de proteger” civis diante de atrocidades, limita-se hoje a uma retórica vazia. A União Africana, sediada ao lado do epicentro do conflito, mostra-se incapaz de exercer liderança. Propôs diálogos formais que nunca saíram do papel. A União Europeia, que se apresenta como guardiã dos direitos humanos, restringe-se a declarações e pacotes humanitários insuficientes, mais preocupada em conter fluxos migratórios do que em enfrentar as raízes da violência.
Os relatos dos sobreviventes são brutais. Em vilarejos da fronteira, homens e meninos foram executados em fila, mulheres e meninas estupradas. Milicianos de pele mais clara diziam não querer “ver nenhum negro vivo”. São cenas de limpeza étnica que ecoam o genocídio de Darfur, mas agora com ainda menos atenção internacional.
A guerra no Sudão tampouco é apenas interna. Tornou-se campo de disputa regional, alimentado por apoios externos. As Forças Armadas contam com apoio do Egito, interessado em manter governo central forte em Cartum, além de vínculos com a Arábia Saudita e, mais recentemente, o Irã, que forneceu drones. Já as Forças de Apoio Rápido recebem armas e financiamento dos Emirados Árabes Unidos, acusados de sustentar atrocidades, além de conexões com a facção líbia de Khalifa Haftar e redes mercenárias internacionais. A tragédia transforma-se em guerra por procuração, onde civis pagam o preço de interesses geopolíticos.
Enquanto Biden e Trump evitam cobrar os Emirados, parte do Congresso pressiona por sanções, como a suspensão de vendas de armas. É um ponto de vulnerabilidade: o país, preocupado com sua imagem, já cedeu a pressões em outros conflitos, como o do Iêmen. Mas, até agora, reina o silêncio.
O que poderia ser feito? Trump poderia cobrar publicamente os Emirados a cortar apoio à milícia. Poderia nomear um novo enviado especial para o Sudão. E fortalecer iniciativas locais, como as cozinhas comunitárias que ainda sustentam milhares de famílias.
Em setembro, líderes mundiais se reunirão na ONU para repetir promessas de “um mundo melhor”. A cidade de El Fasher, sitiada pelas Forças de Apoio Rápido e à beira da fome, será o teste real dessa retórica. Se cair, teme-se uma onda de massacres e estupros ainda maior.
De dentro da cidade sitiada, o testemunho é direto: “Estamos morrendo de fome. A responsabilidade não é apenas dos que carregam armas. É do mundo inteiro. Eles têm aviões, têm comida, têm recursos. Mas estão escolhendo não ajudar.”
Essa escolha pela omissão — seja em Gaza, seja no Sudão — é o verdadeiro crime compartilhado.
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