PENSAMENTO PLURAL As doutrinas do poder: de Monroe a Trump, passando por Rockefeller, por Palmarí de Lucena

Da Doutrina Monroe à política de Trump, os Estados Unidos mantêm uma tradição de intervenções disfarçadas de defesa da liberdade, diz o escritor Palmarí de Lucena, em seu comentário. Do Maine ao Iraque, de Havana a Kiev, o discurso da segurança nacional serve como pretexto para a imposição de interesses econômicos e estratégicos. “A história revela a persistência de uma lógica imperial: o poder travestido de virtude e o medo convertido em política global”, acrescenta. Confira íntegra...

Desde o final do século XIX, a América Latina vive sob a sombra do expansionismo norte-americano travestido de tutela moral. A Doutrina Monroe, proclamada em 1823 sob o lema “América para os americanos”, nasceu como um escudo contra o colonialismo europeu, mas logo se converteu em instrumento de dominação econômica e militar dos Estados Unidos sobre o continente. A retórica da proteção evoluiu para a prática da ocupação — e o Incidente do Maine, em 1898, foi o ponto de inflexão simbólico dessa virada.

A explosão do navio USS Maine no porto de Havana, falsamente atribuída à Espanha, ofereceu o pretexto ideal para a intervenção americana em Cuba e o início da Guerra Hispano-Americana. A imprensa sensacionalista de Hearst e Pulitzer inflamou a opinião pública com o grito “Remember the Maine!”, transformando uma tragédia acidental em bandeira patriótica. Décadas depois, o episódio seria reconhecido como um exemplo clássico de manipulação política e midiática, que abriu caminho para o controle dos Estados Unidos sobre Cuba, Porto Rico, Guam e as Filipinas — e inaugurou a era de sua hegemonia imperial no Caribe.

Ao longo do século XX, essa presença assumiu formas mais sutis. Nelson Rockefeller, em suas missões diplomáticas pela região durante a Segunda Guerra Mundial, não hesitou em associar o avanço comunista à influência da Igreja Católica e em defender que o protestantismo — mais “adaptado” ao capitalismo — fosse disseminado como barreira ideológica. Assim, consolidava-se um modelo de influência cultural e econômica que dispensava tanques, mas usava púlpitos, dólares e doutrinas econômicas.

Já no século XXI, a doutrina de Trump retomou, com brutal franqueza, a lógica monroísta: tratou a Venezuela como ameaça à segurança nacional e tentou reduzir a Colômbia e o Caribe a zonas de contenção. O discurso da liberdade foi novamente instrumentalizado como justificativa de sanções, bloqueios e intervenções políticas. No fundo, nada mudou: o músculo letal das forças armadas do “Departamento de Guerra” apenas se flexiona de modo mais visível na América Latina, enquanto em outros continentes o alto-falante substitui a força bruta.

Desde então, o pretexto mudou de forma, mas não de essência. Se antes bastava invocar o “perigo espanhol” ou o “fantasma comunista”, hoje tudo o que possa ser rotulado de terrorismo converte-se em alvo legítimo de sanções e ataques bélicos conduzidos pelos Estados Unidos — mesmo quando tais ações violam a soberania de nações independentes. A retórica da “defesa da segurança nacional” funciona como um salvo-conduto moral, tão conveniente quanto a justificação de Vladimir Putin para invadir a Ucrânia em nome da “autoproteção” russa contra o avanço da OTAN. Ambos os discursos compartilham a mesma lógica imperial: transformar a segurança em dogma e o medo em política.

Assim, as grandes potências — ontem como hoje — invocam princípios universais para justificar interesses particulares. De Monroe a Putin, passando por Rockefeller e Trump, a geopolítica continua sendo o teatro onde cada império encena sua versão de altruísmo armado.

Ao percorrer essa linha de continuidade entre doutrinas, pretextos e intervenções, vê-se que o poder raramente se disfarça de virtude por inocência. Do Maine ao Iraque, de Havana a Kiev, a história repete o enredo de impérios que agem em nome da liberdade, mas avançam movidos por interesses estratégicos e econômicos. A retórica muda, os meios se sofisticam, mas a lógica persiste: a da imposição travestida de proteção. Enquanto o mundo aceitar que a força pode substituir o diálogo e que a “segurança nacional” justifica a violação da soberania alheia, o ciclo das intervenções continuará a girar — com novos protagonistas, mas velhas ambições.

 

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