PENSAMENTO PLURAL Entre o populismo e a omissão, por Palmarí de Lucena

O comentário do escritor Palmarí de Lucena analisa “a paralisia moral e política do Parlamento brasileiro” diante do populismo e das pressões externas. Denuncia a importação acrítica do discurso do “narcoterrorismo” e alerta para o risco de o país submeter sua soberania a interesses estrangeiros. “Ao contextualizar a crise global dos opioides sintéticos, mostra como a antiga lógica de repressão perdeu eficácia e expõe a fragilidade das instituições diante da retórica fácil”, mostra. Confira íntegra...

A Câmara dos Deputados, que já simbolizou o vigor da democracia e a força da representação popular, atravessa um momento de hesitação e descrédito. Sob o comando de Hugo Motta, a instituição parece à deriva entre pressões políticas e interesses cruzados, reagindo mais ao sabor das circunstâncias do que a uma agenda de Estado. A liderança congressual, fragilizada, oscila entre gestos de conveniência e omissões calculadas, justamente quando o país mais necessita de clareza e firmeza na defesa da legalidade e da soberania nacional.

O Parlamento, que deveria ser o fórum da razão pública, tem cedido espaço à lógica do espetáculo. Propostas de apelo populista — como a proibição da cobrança por bagagens de mão — recebem tratamento prioritário, enquanto temas estruturais, como desemprego, desigualdade, educação, segurança e sustentabilidade fiscal, permanecem relegados ao segundo plano. Essa inversão de prioridades revela o desequilíbrio entre a busca de popularidade e o exercício da responsabilidade política. A retórica fácil substitui o debate qualificado; e o imediatismo, a coerência.

Nos últimos meses, o discurso sobre segurança pública e combate ao narcotráfico foi capturado por uma narrativa que mistura conceitos e amplia perigosamente o alcance do poder coercitivo do Estado. Inspirada na doutrina do “narcoterrorismo” propagada nos Estados Unidos, essa retórica confunde terrorismo e crime organizado — fenômenos distintos, que exigem enquadramentos jurídicos e respostas institucionais próprias. A simplificação discursiva distorce a realidade e abre espaço para medidas excepcionais e militarizadas, com sérias implicações para o Estado de Direito.

A era dos opioides sintéticos transformou radicalmente a geografia do tráfico e esvaziou a eficácia das políticas tradicionais de combate. Já não se trata de erradicar plantações de papoula ou coca, nem de interceptar rotas de heroína e cocaína: as novas drogas podem ser produzidas em qualquer lugar, a partir de precursores químicos importados e processados em laboratórios clandestinos. Segundo a Global Initiative, as cadeias de suprimento de opioides sintéticos — como o fentanil — já alcançam a Europa e outras regiões de forma autônoma, independentes das rotas clássicas do Triângulo Dourado ou dos Andes. 

Essa descentralização rompe fronteiras e torna obsoletas as estratégias convencionais de repressão, que ainda operam sob o paradigma do século XX. As redes químicas digitais, invisíveis e de baixo custo desafiam os mecanismos de controle, deslocando o problema do campo da segurança para o domínio da inteligência, da saúde pública e da diplomacia internacional.

Nesse contexto, a especulação de que facções brasileiras, como o PCC e o Comando Vermelho, possam vir a ser classificadas como organizações terroristas pelos Estados Unidos adquire contornos alarmantes. Uma decisão dessa natureza, ainda que sob o pretexto de combater o crime transnacional, teria efeitos devastadores sobre a soberania nacional e a autonomia jurídica do país. Ao importar enquadramentos estrangeiros sem um debate interno consistente, o Brasil corre o risco de submeter sua política de segurança a interferências externas e a sanções econômicas disfarçadas de cooperação internacional.

As repercussões seriam imediatas e profundas. Bastaria a suspeita de que o sistema bancário ou plataformas de pagamento, como o Pix, foram “infiltrados” por facções criminosas para que Washington impusesse restrições unilaterais, atingindo setores estratégicos da economia. O combate ao crime não pode ser convertido em instrumento de pressão política. Segurança e soberania precisam caminhar lado a lado, dentro de marcos legais que respeitem a proporcionalidade, os direitos civis e a autonomia institucional.

Enquanto isso, parte do Congresso brasileiro ecoa, sem reflexão crítica, discursos importados que reduzem o debate público à caricatura. Pedidos de intervenção estrangeira e alianças apressadas em nome da “guerra às drogas” soam como renúncia à independência política. Em um cenário global marcado por tensões geopolíticas e novos protecionismos, o Brasil precisa reafirmar seu próprio caminho — pautado pela legalidade, pelo diálogo e pela responsabilidade institucional.

Mais do que nunca, é preciso que o Parlamento recupere o sentido de sua missão: representar a sociedade, proteger as instituições e agir com prudência diante de pressões externas ou paixões internas. A autoridade política não se constrói com bravatas nem com marketing, mas com coerência moral e compromisso público. Em tempos de incerteza, o equilíbrio é a virtude mais escassa — e a mais necessária para quem tem a missão de conduzir a nação.

 

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