
Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena adverte como a Conferência de Segurança de Munique reflete o colapso moral da ordem global. Entre discursos sobre paz, multiplicam-se guerras: Ucrânia, Gaza, Sahel, Sudão. A anexação de territórios e violações de direitos humanos revelam a erosão do direito internacional. Putin, Trump e o avanço do nacionalismo transformam o diálogo em desconfiança. “O mundo repete Munique — um palco de promessas quebradas diante de fronteiras e vidas em ruínas”, postula. Confira íntegra...
Há cidades que se tornam símbolos da consciência humana. Munique é uma delas. No mesmo solo onde, em 1938, potências assinaram um acordo em nome da paz e abriram caminho para a guerra, o mundo volta a se reunir, ano após ano, para discutir segurança e civilização — dois conceitos que parecem se distanciar a cada novo conflito.
A Conferência de Segurança de Munique nasceu em 1963 como um fórum de diálogo. Hoje, é o espelho da desordem. Discute-se a guerra com a naturalidade dos que já se habituaram à sua presença. E fala-se de paz com o cansaço dos que a pronunciam sem mais acreditar no seu poder.
O eco de Vladimir Putin ainda ressoa nas paredes do Hotel Bayerischer Hof. Em 2007, ele advertiu contra o expansionismo ocidental e denunciou a ordem unipolar. Mas a história devolveu-lhe o reflexo: sob o mesmo discurso de soberania, o Kremlin atravessou fronteiras, anexou territórios, destruiu cidades e sepultou tratados. A palavra “segurança” perdeu o sentido quando passou a justificar a violação sistemática da lei internacional.
O retorno de Donald Trump ao centro da política americana e a ascensão de movimentos nacionalistas reacenderam o isolacionismo e a desconfiança. A velha aliança atlântica, que por décadas sustentou a arquitetura da paz relativa do pós-guerra, se fragmenta em discursos que glorificam fronteiras e desprezam cooperação. O antiglobalismo tornou-se religião, e a ideia de solidariedade internacional, um luxo moral em tempos de egoísmo político.
Mas o mapa das tragédias não se limita à Europa.
Na África, o Sahel, o Sudão, o Congo e a Etiópia queimam sob o fogo da ambição. Fronteiras artificiais, traçadas a régua por antigos impérios, hoje se convertem em linhas de morte. As guerras por minérios e por território seguem devorando gerações sem que a comunidade internacional olhe de frente o desastre. Em muitos desses países, a fome e a violência já não são notícias — são rotina.
E no Oriente Médio, a ferida volta a sangrar. Em Gaza, a devastação ultrapassou o limite do suportável. Cidades arrasadas, hospitais destruídos, crianças mortas sob escombros — o horror tornou-se cotidiano. O discurso de autodefesa já não sustenta o peso das imagens. Colonos israelenses, amparados por setores do governo, expandem assentamentos na Cisjordânia e anexações ilegais transformam o sonho palestino em miragem. O que antes se chamava “processo de paz” virou apenas silêncio e escombros.
Como falar em segurança global diante de tanta violação? Como defender a legitimidade das fronteiras na Europa e ignorar a sua destruição no Oriente Médio ou na África? A seletividade moral das potências corrói o próprio alicerce da diplomacia. O que se denuncia em Moscou, se tolera em Tel Aviv. O que se condena em Cartum, se esquece em Kiev. Essa hipocrisia institucional é o verdadeiro vírus que ameaça o sistema internacional.
Munique tornou-se, assim, uma vitrine da incoerência global — e, ao mesmo tempo, seu espelho rachado. Entre discursos e promessas, o mundo repete velhas tragédias com novas justificativas. Sob o verniz das alianças e dos tratados, a humanidade parece ter perdido a coragem de se reconhecer no sofrimento alheio.
A verdadeira segurança não se constrói com tanques nem com mísseis, mas com respeito às fronteiras legítimas, às vidas civis e aos direitos humanos universais.
Sem isso, Munique continuará sendo palco de discursos sobre a paz — enquanto, lá fora, as bombas continuam a ditar o destino da história.
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