
Em sua crônica, o cineasta Durval Leal discorre sobre um Deus que “não é misógino”, que brinca de Big Bang, “transformas galáxias em olhos de burados negros”. Durval contesta recente declaração do Papa Leão XIV, de que “não foi Nossa Senhora que salvou a humanidade, mas Cristo”: “Mas se olharmos para a história, não a dos dogmas, mas a dos fatos, veremos que foram justamente as mulheres que salvaram a Igreja, e mais de uma vez.” Confira íntegra de seu comentário…
Não sou ateu. Tenho a convicção de um Deus, um ser maior, um Deus que brinca de Big Bang, que transforma galáxias em olhos de buracos negros. Um Deus que não joga dados, mas compõe o infinito; que faz do silêncio o riso inquietante da criação. E, ao pensar nisso, o que me inquieta não é Deus, é a Igreja.
Tenho apenas uma certeza, Deus não é misógino. Pois foi Ele quem deu à mulher o dom da vida, o dom de perpetuar a espécie, de sustentar o clã e de ser a construtora da própria humanidade. E, no entanto, é curioso, ou trágico, como a Igreja, que se diz obra desse mesmo Deus, insiste em colocar a mulher no último banco da missa, na sombra do altar, como se fosse uma figurante da fé.
A última do Papa, aquela declaração de que “não foi Nossa Senhora que salvou a humanidade, mas Cristo”, é mais uma amostra dessa cegueira eclesiástica. É o retrato perfeito de como a Igreja trata as mulheres, com reverência aparente e desdém institucionalizado. Afinal, segundo essa lógica, Maria pode até ter carregado o Salvador no ventre, mas não participou da salvação. Foi apenas a barriga emprestada do milagre.
Mas se olharmos para a história, não a dos dogmas, mas a dos fatos, veremos que foram justamente as mulheres que salvaram a Igreja, e mais de uma vez. Foi Helena, mãe de Constantino, quem fez do cristianismo a religião soberana do Império Romano. Não foi um Papa, nem um bispo, nem um teólogo, foi uma mulher que, com sua fé e sua diplomacia, colocou a cruz no topo das coroas.
Depois, veio outra Mônica, mãe de Santo Agostinho. Foi ela quem lutou para que o filho abandonasse os prazeres pagãos e se tornasse o grande pensador da Igreja. Agostinho virou santo, doutor, ícone, e a mãe, claro, ficou no rodapé das notas de rodapé. Mas por obra e graça do filho, também se tornou santa.
E o que dizer de Maria Madalena? A mulher que mais compreendeu o Cristo humano, o Cristo da compaixão, da escuta, do afeto. Foi ela quem permaneceu aos pés da cruz quando todos fugiram. Foi ela quem o encontrou primeiro após a ressurreição. Mas, para o Vaticano, Maria Madalena é apenas uma nota de esquecida de evangelho apócrifo, uma discípula “honrada”, embora sem credenciais para o sacerdócio. Afinal, o Espírito Santo, ao que parece, só sopra em direção aos homens.
Houve também Marta e Maria, irmãs de Lázaro. Foram elas que ofereceram ao Cristo abrigo, alimento e humanidade. Marta servia, Maria escutava, e ambas sustentavam a fé doméstica que manteve o evangelho vivo antes dos concílios, dos dogmas e das bulas papais.
E veio Joana d’Arc, a jovem que, em nome da Igreja Católica, empunhou a espada e a fé ao mesmo tempo. Libertou um povo, acreditou numa voz divina e terminou na fogueira, condenada pela mesma instituição que depois a canonizou. Um clássico da administração eclesiástica, primeiro queima-se a mulher, depois se acende uma vela em sua homenagem.
E, apesar disso tudo, a Igreja persiste. Persiste em relegar as mulheres ao terceiro plano. Persiste em manter o altar como território sagrado dos homens. Persiste em fingir que as fiéis são ovelhas dóceis, quando na verdade sustentam o rebanho inteiro.
Foi do Espírito Santo que Nossa Senhora recebeu o sinal, foi dela o ventre que gerou o verbo, foi dela o “sim” que fez nascer uma fé. E, no entanto, até hoje a Igreja hesita em reconhecer que sua sobrevivência dependeu, e depende, dessas mulheres que acreditam mais em Deus do que na própria hierarquia da fé.
São as mulheres que limpam os altares, que decoram as capelas, que rezam o terço, que educam os filhos na catequese, que fazem novenas, que organizam quermesses e que mantêm as igrejas de portas abertas. São as mulheres que, todos os dias, produzem a fé, e, paradoxalmente, são também as que menos têm espaço dentro dela.
Afinal, dentro da estrutura católica, o Espírito Santo pode descer sobre Maria, mas não sobre uma mulher sacerdotisa. O mesmo Deus que criou o mundo e confiou à mulher o poder da vida não pode, segundo a burocracia celeste do Vaticano, confiar-lhe um cálice de vinho e uma hóstia consagrada. E aqui a contradição se torna mais gritante, se Maria é “aquela que dá à luz Deus”, por que sua imagem serve apenas como símbolo de pureza e obediência, e não de autoridade espiritual? Se a mulher foi capaz de gerar o divino, por que lhe é negado o direito de representá-lo no altar?
Se Maria, a mulher mais exaltada da tradição cristã, é mantida apenas como símbolo de pureza e obediência, não estaria a Igreja Católica reafirmando a exclusão feminina dos espaços de poder e de voz na fé?
Ao negar títulos que a aproximam da mediação divina, o Vaticano protegeria o monoteísmo ou perpetuando uma hierarquia que relega a mulher a um papel submisso e ornamental na doutrina cristã?
Como conciliar a veneração à figura materna de Maria com a ausência de mulheres nas instâncias decisórias e sacerdotais da Igreja? Seria o controle sobre os dogmas marianos também uma forma simbólica de conter a ascensão feminina dentro da própria fé católica?
Essas perguntas ecoam entre as paredes douradas do Vaticano, mas raramente encontram resposta. Pois admitir que Maria é mais do que um símbolo significaria reconhecer que o feminino
possui a mesma centelha divina do masculino. E isso seria desestabilizar séculos de poder fundado sobre uma teologia patriarcal.
A Igreja, portanto, segue firme na sua hierarquia, no topo, o Papa; abaixo, os cardeais; depois os bispos e padres; e lá no chão, ajoelhadas e silenciosas, as mulheres que sustentam tudo isso com fé, flores e resignação.
Por que tanto medo da mulher dentro da Igreja? Talvez porque ela seja, como sempre foi, o eixo da vida, a essência da continuidade e o espelho da fé inabalável. Talvez porque, no fundo, o que mais assusta o patriarcado eclesiástico é o fato de que, se Deus é o verbo, foi uma mulher quem o fez carne. E é essa carne, essa força e essa fé que a Igreja insiste em esconder sob o véu, atrás do altar, como se o próprio milagre da criação não tivesse nascido de um ventre feminino.
Mas talvez esteja chegando o tempo de desvelar Maria, não a santa silenciosa, mas a mulher inteira, aquela que dá à luz o divino e o humano, o verbo e a dor, a fé e a dúvida. Talvez o verdadeiro milagre seja reconhecer que, em cada mulher invisibilizada pela Igreja, há uma centelha da mesma força que gerou o Cristo.
Enquanto a Igreja seguir negando esse reconhecimento, permanecerá cega diante do maior de todos os mistérios, o de que a fé, como a vida, nasce do corpo de uma mulher.
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