PENSAMENTO PLURAL A Era da Desconfiança, por Palmarí de Lucena

O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a crise de confiança que abala as relações internacionais e o risco da instrumentalização política do direito. A decisão do Reino Unido de suspender o compartilhamento de inteligência com os EUA e a cautela do Brasil diante do uso do termo “terrorismo” revelam a necessidade de preservar soberania e legalidade. O artigo alerta ainda para o perigo da sincronização entre forças políticas brasileiras e estrangeiras, que ameaça a autonomia institucional e democrática do País. Confira íntegra...

As relações internacionais vivem um tempo em que a prudência vale mais do que a lealdade automática. Um país pode perder prestígio não por fraqueza, mas por cautela. Quando o Reino Unido decide suspender o compartilhamento de informações de inteligência com os Estados Unidos — para não se tornar cúmplice de ataques que considera ilegais — e quando o Brasil manifesta receio de sanções ao discutir o uso do termo “terrorismo”, revelam-se sinais de um mesmo fenômeno: a fragilidade do sistema internacional diante da erosão da confiança e da instrumentalização política do direito.

A decisão britânica rompe uma tradição de décadas. Ao suspender a cooperação, Londres não questiona a aliança, mas o método: rejeita a ideia de que a segurança possa justificar a violação das normas internacionais. Essa ruptura entre aliados históricos reflete algo mais profundo — um mal-estar crescente com o uso seletivo da força e da lei, sob a justificativa de autodefesa ou combate ao crime.

O Brasil, por sua vez, enfrenta dilema semelhante, embora em contexto distinto. A eventual classificação de grupos como “terroristas”, mencionada em análises recentes, acende um alerta: palavras assim têm poder jurídico, econômico e simbólico, e seu uso precipitado pode resultar em sanções externas, isolamento comercial e prejuízos reputacionais. O governo teme, com razão, que o rótulo jurídico se torne instrumento político, e que o combate ao extremismo se confunda com a criminalização de adversários.

Mas há um perigo adicional — e menos debatido. O de sincronizar interesses político-partidários internos com agendas estrangeiras. A crescente aproximação entre setores da direita brasileira e grupos ideológicos ligados ao Partido Republicano dos Estados Unidos sugere o esboço de uma oposição transnacional, que opera por afinidade doutrinária e não por lealdade institucional. Essa convergência cria canais de influência externos capazes de interferir, direta ou indiretamente, nas escolhas do país — do comércio à política ambiental, da diplomacia à segurança.

O risco é claro: permitir que parlamentares ou estrategistas estrangeiros definam, inspirem ou financiem agendas internas é renunciar a soberania. A história ensina que nenhuma nação preserva seus interesses quando suas divergências domésticas passam a ecoar vozes de fora. O debate público deixa de ser nacional e torna-se um palco onde potências externas testam narrativas, plantam dúvidas e moldam consensos convenientes aos seus próprios objetivos.

Essa transnacionalização da política — que já se manifesta nas redes, nas campanhas e até nas estratégias de desinformação — transforma o antagonismo interno em ferramenta de pressão geopolítica. A política doméstica, assim, corre o risco de se tornar um espelho dos conflitos ideológicos globais, esvaziando a autonomia de suas instituições e o sentido de sua própria democracia.

Ao suspender o compartilhamento de inteligência, o Reino Unido sinaliza que a lealdade entre aliados deve ter limites éticos. Ao agir com cautela diante da linguagem do terrorismo, o Brasil busca resguardar sua soberania jurídica e econômica. E, ao refletir sobre a crescente influência de agendas estrangeiras em seu debate político, o país precisa reafirmar que nenhum projeto nacional pode ser subcontratado por interesses externos, ainda que travestidos de afinidade ideológica.

Em tempos de alianças fluidas e fronteiras invisíveis, a verdadeira força de uma nação reside na sua capacidade de decidir com autonomia, ponderar com lucidez e agir com responsabilidade. A prudência não é sinônimo de indecisão, mas de maturidade institucional. O Brasil, como o Reino Unido, enfrenta o desafio de sustentar princípios em meio à pressão dos interesses. Preservar a legalidade, distinguir aliados de influenciadores e manter a política externa imune às paixões internas são tarefas que definem a estatura moral de um país.

Num mundo em que a confiança se fragmenta e a retórica substitui a razão, resistir à tentação da conveniência é, talvez, o último ato de soberania que ainda nos resta.

 

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