PENSAMENTO PLURAL A fome: A última arma, por Palmarí de Lucena

A fome no século XXI deixou de ser uma tragédia natural e tornou-se arma silenciosa. Em lugares como Sudão e Gaza, ela é produzida por cercos, bloqueios, destruição agrícola e decisões políticas que transformam o alimento em instrumento de guerra. Como lembra José Graziano da Silva, a fome é sempre uma escolha — jamais inevitável. “Enquanto o mundo hesita em responsabilizar quem a utiliza como estratégia, civis continuarão pagando com o corpo o preço da indiferença global”, postula o escritor Palmarí de Lucena em seu comentário. Confira íntegra...

A fome sempre foi mais do que a ausência de alimento. É a fronteira final da crueldade humana, o ponto em que a vida deixa de ser fluxo e se torna disputa. No século XXI — quando satélites vigiam colheitas, algoritmos preveem secas e navios cruzam oceanos carregados de grãos — a persistência de milhões de pessoas à beira da catástrofe não pode ser atribuída à fatalidade. A fome, hoje, raramente é natural. Ela é, sobretudo, uma decisão humana. Às vezes, um cálculo. Muitas vezes, uma arma.

A insegurança alimentar desenha o mapa do mundo como uma constelação de pontos vermelhos: o Sudão em colapso, Gaza submetida ao vazio, o Sahel fendido pela violência, partes da Ásia e da América Latina pressionadas por climas extremos e mercados voláteis. Conflitos prolongados, instabilidade econômica e eventos climáticos explicam parte do cenário. Mas cada número que compõe essa cartografia da necessidade revela escolhas de governos, exércitos, milícias, ou até de mercados que definem, com precisão fria, quem terá acesso ao básico e quem será lançado ao abismo.

No Sudão, a fome já ultrapassou o limiar da tragédia. Milhões vivem entre a crise e a catástrofe. Plantios destruídos, silos queimados, rotas humanitárias interrompidas e comunidades sitiada por forças rivais que compreendem, com clareza brutal, que controlar alimentos é controlar pessoas. Mulheres e meninas enfrentam os efeitos mais profundos: não por destino histórico, mas porque a guerra lhes retira até a fila para o pão. Ali, a fome é instrumento de coerção.

Em Gaza, o cenário não é apenas grave; é extremo. A fome foi oficialmente declarada, e indicadores de desnutrição atingem níveis que deveriam constranger o mundo. Crianças com corpos leves demais para sustentar um futuro observam caminhões de ajuda que chegam tarde ou não chegam. Padarias destruídas, moinhos inutilizados, fazendas urbanas arrasadas — tudo converge para uma paisagem em que o alimento, antes gesto elementar de cuidado, converte-se em objeto de disputa militar. A fome aí não nasce do clima. É concebida em gabinetes, sustentada por bloqueios e alimentada pela lógica do cerco.

O termo que descreve essa prática — foodfare — talvez soe técnico, até asséptico. Mas trata de algo visceral: o uso de alimentos, água e sistemas agrícolas como armas. É a weaponização do essencial. A fome desloca, desmoraliza, colapsa sociedades, força negociações e silencia resistências. É barata, silenciosa, eficiente — e devastadora. Por isso mesmo, proliferou.

O mundo globalizado não está imune. Quando países restringem exportações para ganhar influência, quando mercados manipulam estoques, quando cadeias logísticas se tornam peças de barganha, a fome moderna assume uma nova forma: mistura de pólvora e planilhas, de conflitos e burocracias.

É nesse ponto que o pensamento de José Graziano da Silva ganha peso moral. Ele lembra o óbvio que muitos preferem esquecer: “A fome não é inevitável; é uma escolha política.” O planeta produz alimentos suficientes. O que falha é o acesso, a distribuição, a renda — e, acima de tudo, a vontade política. Para Graziano, enfrentar a fome exige prioridade, recursos e capacidade de implementar políticas globais que ultrapassem fronteiras. Nada disso acontece por inércia; acontece por decisão.

O sistema multilateral — ONU, FAO, PMA, Unicef e tantas outras organizações — é, apesar de suas imperfeições, a última linha de contenção. É ele que abre corredores humanitários, reconstrói padarias, garante sementes, protege populações inteiras do colapso absoluto. Mas sozinho não basta. A fome continuará sendo arma enquanto não houver mecanismos internacionais firmes de responsabilização, monitoramento por satélite, transparência compulsória sobre bloqueios e tratados que proíbam explicitamente o uso de alimentos como instrumento de guerra.

A fome é o mais antigo e o mais silencioso dos conflitos humanos. E, diante de uma criança com o estômago vazio, qualquer justificativa política se desfaz. Nenhum Estado, nenhuma causa, nenhum exército tem o direito de transformar alimento em munição. A escolha entre repetir essa história ou encerrá-la ainda está aberta — mas não por muito tempo.

A fome é a última arma. E o mundo já demorou demais para desarmá-la.

 

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