
O seu comentário, o cineasta Durval Leal Filho afirma: “O silêncio não me convence, sobretudo quando ele se deita confortável sobre a política.” E ainda: “Se, no íntimo, o silêncio já era perigoso como fuga ética, na vida pública ele se torna um mecanismo de preservação de privilégios. Quando pensamos na Paraíba de hoje, esse silêncio ganha nomes, rostos e acordos”, acrescenta. Confira íntegra...
Não é um silêncio abstrato: é o silêncio diante de trajetórias políticas marcadas por prisões, denúncias e investigações, e, mesmo assim, recicladas como se fossem a única alternativa possível.
Dizem que a política é a arte do possível. Na Paraíba, virou a arte do improvável, do inacreditável e, em dias mais inspirados, do francamente cômico. A nova moda é a possibilidade, quase mitológica, de Cícero Lucena e Ricardo Coutinho caminharem juntos. Não como personagens de um episódio de House of Cards, mas como protagonistas de uma novela regional sobre como transformar denúncias, investigações e prisões em slogans de “experiência”.
Vivemos um tempo em que a palavra “experiência” passou a encobrir quase tudo. Ela serve de biombo para dar verniz a biografias que carregam, ao lado de realizações administrativas, um histórico de operações policiais, decisões judiciais, ações penais e suspeitas graves sobre o uso do dinheiro público. No caso de figuras como Ricardo Coutinho e Cícero Lucena, não se trata de boato de esquina, mas de investigações documentadas, operações como Calvário e Território Livre, decisões de tribunais, medidas cautelares, inquéritos da Polícia Federal e do Ministério Público.
E, ainda assim, o que se observa é a naturalização de sua presença constante no tabuleiro. O ex-governador, com processos remetidos à Justiça Eleitoral no contexto da Operação Calvário, acusado de participar de esquema de desvios de recursos públicos por meio de organizações sociais e contratos na saúde e em outras áreas. O atual prefeito, alvo de inquérito para apurar suspeita de ligação com facção criminosa, corrupção eleitoral, coação de eleitores, organização criminosa e peculato, a partir de elementos levantados na Operação Território Livre, que já levou à condição de ré a primeira-dama e outros investigados.
Diante disso, o que faz a sociedade? Em grande parte, silencia. Alguns por medo, outros por cansaço, muitos por conveniência. E esse silêncio abre espaço para a hipótese mais inquietante: a de que esses mesmos atores políticos, marcados por suspeitas e processos, possam não apenas continuar disputando poder, mas até mesmo se unir, compondo alianças que, em qualquer democracia minimamente exigente, seriam alvo de enorme resistência social.
Não é preciso delírio conspiratório para imaginar o cenário. A lógica do compadrio, tão antiga quanto a própria política local, oferece a argamassa, grupos que se reagrupam, adversários de ontem que se tornam aliados de amanhã, acordos costurados nos bastidores em nome da “governabilidade”, da “unidade”, da “defesa do projeto”. A palavra muda, o mecanismo é o mesmo.
Mas, nesse rearranjo, pouco parece importar se os nomes envolvidos carregam investigações por supostos desvios de recursos da saúde, da educação ou por tentativas de manipular eleições com apoio de estruturas criminosas.
Vamos imaginar a cena: dois ex-gestores, um com passagens pela Operação Calvário, outro com inquérito da Polícia Federal por suposta ligação com facção. Sentados à mesa, tomando café, com seus respectivos asseclas, avaliando quem traz mais “capital moral” para a chapa. Não dá nem para saber onde termina a ironia e começa a campanha.
Ricardo, com sua biografia marcada pelo desvio de milhões da saúde e da educação, explica: O importante é que o povo esqueça. O segredo é falar “perseguição” com convicção.
Cícero, com a serenidade de quem já viveu operações policiais como se fossem estações do ano, responde: O povo esquece. Confie. Eles sempre esquecem… e silenciam.
É aqui que o silêncio se torna protagonista. Porque não se trata apenas da ausência de voz das instituições, estas continuam, ainda que lentamente, produzindo inquéritos, decisões, despachos.
Trata-se do silêncio social, do recuo das pessoas comuns, das entidades, das lideranças locais, de segmentos que preferem não se indispor. É o silêncio dos que dizem “política é assim mesmo”, “todos são iguais”, “não adianta falar”. Esse tipo de silêncio não é neutro, ele pavimenta caminho.
Quando a sociedade recua da palavra, quem avança é o arranjo. E o arranjo não é abstrato, ele é feito de pessoas, partidos, grupos que, diante de riscos judiciais e de perda de capital político, buscam refúgio na força do bloco. Uma possível aliança entre figuras sob investigação não seria apenas um movimento eleitoral, seria uma demonstração simbólica de que suspeitas graves não são obstáculos intransponíveis, desde que se tenha base, tempo de televisão, estrutura e um discurso pronto sobre “perseguição”, “lawfare” ou “injustiça histórica”.
O silêncio, então, deixa de ser apenas omissão e passa a ser parte da engrenagem. Quando ninguém pergunta por que alguém sob acusação de envolvimento em desvio de dinheiro público volta a se apresentar como gestor natural, quando quase ninguém questiona por que um prefeito investigado por supostas ligações com facção criminosa ainda é tratado como liderança incontestável, quando se aceita que uma eventual união entre esses nomes seja tratada como simples “estratégia eleitoral”, o que está em jogo já não é apenas uma eleição. É a régua moral coletiva.
O mais inquietante é perceber como esse processo se constrói pela repetição. Cada eleição em que nomes sob grave suspeita aparecem como opção “normal” rebaixa um pouco mais o patamar do aceitável. Cada acordo costurado em torno da “viabilidade” enfraquece a exigência de integridade. Cada vez que um cidadão se abstém de questionar por receio, cansaço ou descrença, a política aprende que pode ir um pouco além. E assim, o que ontem seria impensável, como uma chapa ou um pacto entre lideranças marcadas por investigações robustas, passa a ser só mais um capítulo da novela.
Não é necessário declarar culpados antecipadamente para perceber o dano. A presunção de inocência é princípio jurídico, mas a presunção de idoneidade é escolha política. O fato de alguém ter o direito de se defender e de disputar eleições não obriga a sociedade a tratá-lo como se nada estivesse em curso. O problema é quando esse raciocínio é invertido, usa-se a linguagem do “direito” para silenciar o dever de questionar. Falar das investigações passa a ser visto como “ataque”; discutir o histórico vira “perseguição”, cobrar explicações públicas se converte em “ódio”. O silêncio, então, é reembalado como moderação.
Nesse ambiente, a possibilidade de que maus gestores do dinheiro público, assim compreendidos pelo conjunto de ações penais, suspeitas e investigações em curso, se juntem em torno de um projeto de poder deixa de ser aberração e se torna quase consequência lógica. Se a sociedade não reage, se as instituições demoram, se a memória é curta e o marketing é eficiente, por que não se unir? A aliança deixa de ser constrangimento e passa a ser resposta “pragmática”.
O que esse quadro anuncia para a Paraíba? Em termos concretos, a permanência de um ciclo em que a disputa política é colonizada por figuras cuja relação com o dinheiro público vem sendo seriamente questionada pela Justiça. Em termos simbólicos, a consolidação da mensagem de que integridade é detalhe, que investigações podem ser contornadas com narrativa, que o passado se resolve com slogan. A longo prazo, o resultado é corrosivo: desmobiliza, deseduca, rebaixa expectativas e afeta diretamente a confiança das pessoas na própria ideia de democracia.
É aqui que não me calo, que não comungo do silêncio. Não o silêncio íntimo, necessário em alguns momentos, mas o silêncio público, cúmplice. A recusa de emitir opinião, o medo de se posicionar, o cálculo de não desagradar. É esse não dizer que acaba permitindo que o que hoje parece ficção política, a aliança que ninguém pediu, acabe se materializando como fato consumado. Ninguém pode alegar surpresa, se tudo estava anunciado na combinação de processos, operações e acordos, e mesmo assim prevaleceu a escolha de não nomear.
Parabéns, Paraíba. Vinte anos de desgoverno reciclado, embrulhado para presente com laço vermelho e preto. Agora em versão “união de todos pelo bem comum”. O bem comum, claro, deles mesmos. Porque, para o povo, sobra só o enredo: mais quatro anos assistindo, em silêncio ao mesmo filme, só que agora em 4K e com o elenco auspicioso de Campina Grande reunido em apoio, em apoteose. EU ME NEGO, AO SILENCIO!!!
(*Imagem de uma máscara de madeira do artesanato de Porto Príncipe)
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