PENSAMENTO PLURAL O silêncio diplomático e a cor da exclusão, por Palmarí de Lucena

O texto do escritor Palmarí de Lucena expõe o antissemitismo institucional do Itamaraty no Estado Novo, revelado por circular secreta que restringia vistos a judeus. Essa política se inseria em um longo projeto de branqueamento e exclusão racial no Brasil, reforçado por decretos imigratórios seletivos. “A deportação de Olga Benário simboliza o ápice dessa intolerância. Apesar do apoio posterior à criação de Israel, persiste o peso do silêncio histórico”, pontua. A análise alerta para a repetição contemporânea da lógica de exclusão contra refugiados e migrantes. Confira íntegra...

“O mais terrível é que o mal pode ser cometido por pessoas que nunca decidiram ser más.”
Hannah Arendt

A descoberta da circular secreta do Itamaraty, revelada pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, expôs um dos episódios mais constrangedores da diplomacia brasileira: a existência de antissemitismo institucionalizado durante o Estado Novo. O documento orientava consulados a restringirem a concessão de vistos a pessoas de origem judaica, sob justificativas econômicas e de segurança nacional.

Por trás da linguagem burocrática, escondia-se o medo da diferença. A recusa em conceder refúgio a quem fugia do nazismo refletia uma política de exclusão e uma visão limitada sobre identidade e pertencimento. Estima-se que dezenas de famílias tiveram seus pedidos negados — muitas delas acabaram deportadas e morreram em campos de extermínio.

A contradição é evidente: poucos anos depois, o chanceler Oswaldo Aranha, que havia chancelado essas restrições, presidiu a Primeira Assembleia Geral da ONU e articulou a criação do Estado de Israel. O mesmo país que negara abrigo às vítimas do Holocausto passou a apoiar, no pós-guerra, a fundação de uma nação destinada a acolhê-las.

Essas atitudes não surgiram por acaso. Desde o fim da escravidão, o Brasil sustentava um projeto de branqueamento populacional, inspirado em teorias eugênicas e raciais que influenciaram parte das elites da Primeira República. Acreditava-se que o progresso nacional dependia da europeização da sociedade.

Leis e decretos formalizaram essa crença. O Decreto 528 de 1890 e, mais tarde, o Decreto 19.482 de 1930 privilegiaram imigrantes europeus e impuseram restrições a africanos, árabes, asiáticos e judeus. Passagens eram subsidiadas e terras distribuídas a famílias brancas vistas como “trabalhadores civilizados”. O discurso de modernidade escondia um projeto de exclusão social que perdurou sob diferentes formas.

Esse ideal moldou a mentalidade dos diplomatas que redigiram a circular do Itamaraty. Quando o mundo enfrentava o colapso moral do Holocausto, o Brasil acreditava proteger-se da diferença. O mito da democracia racial, mais tarde popularizado por Gilberto Freyre, ajudou a disfarçar uma realidade de racismo institucional e desigualdade persistente.

O caso de Olga Benário Prestes expõe o ápice dessa intolerância. Judia alemã e militante política, Olga foi presa grávida em 1936 e entregue pelo governo Vargas à Gestapo. Deportada para a Alemanha, deu à luz em uma prisão de Berlim; sua filha, Anita Leocádia, sobreviveu graças à intervenção de entidades humanitárias. Olga morreu em 1942, em uma câmara de gás. A extradição de uma mulher grávida para um regime totalitário mostrou o quanto o Estado pode falhar quando subordina a dignidade humana a conveniências políticas.

Décadas depois, o Brasil apoiaria a criação do Estado de Israel, gesto simbólico de reparação histórica. No entanto, a memória do silêncio pesa mais do que o voto diplomático. As lições da Segunda Guerra pareciam apontar para o “nunca mais” — mas a história raramente obedece ao esquecimento.

Hoje, em um cenário global marcado por deslocamentos forçados e crises humanitárias, o discurso nacionalista volta a ganhar força, mirando refugiados e migrantes como ameaças à civilização ocidental. A retórica do medo se repete: o “outro” é novamente retratado como risco, não como vítima. Os judeus de outrora tornaram-se os muçulmanos, os refugiados e os trabalhadores migrantes. A lógica é a mesma — apenas os nomes mudaram.

Revisitar essas páginas não é um exercício de culpa, mas de lucidez. O racismo e a exclusão não precisam de leis para existir — bastam a indiferença e o silêncio. A circular secreta do Itamaraty, as políticas de imigração seletiva e o destino trágico de Olga Benário pertencem a uma mesma narrativa: a de sociedades que acreditam poder se proteger negando o outro.

Nenhuma nação se aperfeiçoa pela exclusão. A grandeza de um povo não está na cor de sua pele, nem na origem de sua fé, mas na capacidade de reconhecer a humanidade como valor absoluto. Somente quando o Brasil — e o mundo — encararem o peso de seus silêncios, poderão aspirar a um futuro verdadeiramente civilizado.