
Em seu texto, o cineasta Durval Leal Filho louva a música de Gilberto Gil como um caminho para um Deus, que, se não chora, não é Deus: “Quando um Deus chora, ele não diminui, ele nos autoriza a chorar. Deus que não chora não me serve.” E ainda: “Esse preto velho, esse Deus que ontem falou e chorou, me ensinou que as divindades se aproximam quando a gente já não sabe como prosseguir.” Mas, mesmo assim, “andar com fé eu vou. Que a fé não costuma falhar…” Confira íntegra…
Sou politeísta, tenho vários deuses, semideuses, sirênias, divas. São todos que me elevam para outras margens, que me acodem nas súplicas da solidão e nos tempos de temor. Tenho deuses a quem louvo ao amanhecer. Adoro ouvir deuses além da descendência humana, fazer preces, deixar no ar a oração que se molda na lembrança.
Ontem, eu fui ouvir um Deus. Gil é meu Deus na Terra, porque Deus, o grande, está na distância. Quando Ele se aproxima demais, já não é Deus, é semideus, e semideuses sofrem, carregam o peso do tempo, vergam a coluna, embaraçam os olhos, mas conservam a voz e o pensamento capazes de resolver os enigmas que me atravessam.
“A raça humana risca, rabisca, pinta. A tinta, a lápis, carvão ou giz. O rosto da saudade Que traz do gênesis.”
Por isso digo, “Você é meu Deus primeiro.” É a Ele, e ao cantar suas musicas e canções, que dirijo a súplica. Ali deposito minhas pequenas preces, louvando a vida, saboreando seus encantos e encantamentos, ouvindo suas canções e poesias.
Ontem, eu vi um Deus que chorou. Lembrou dos seus mortos, contou das suas angústias, narrou sua trajetória e seus bradares de guerreiro que ainda enfrenta guerras e tempestades. Às vezes dançou, abriu o corpo para o riso e para o pranto. Seu jeito lembrava um caboclo, parecia rodar como quem incorpora histórias. Falou de deuses negros, de orixás, de amores. E, como Deus velho, falou profundamente das perdas, perdas que marcam a estrada de um preto velho que já deixou sangue pelos caminhos e lágrimas como rastros.
Ele chorou por não estar tão perto de quem chora. Chorou porque tem pena, de quem chora tem dó. E eu chorei com esse Deus, porque ele sempre me encantou como Deus distante, como potência invisível, como força que se insinua. Chorei um pranto de reconhecimento, desses que a gente não segura, porque não se chora por piedade, mas pelo encontro raro com aquilo que transcende.
“Se eu quiser falar com Deus. Tenho que aceitar a dor. Tenho que comer o pão. Que o diabo amassou. Tenho que virar um cão. Tenho que lamber o chão. Dos palácios, dos castelos. Suntuosos do meu sonho…”
Deus é feito de lembranças, dores, alegrias. É toda a satisfação de poder dançar, sorrir e chorar. É vibrar contando um passado nem sempre vitorioso, mas sempre glorioso pelo simples fato de ter sido vivido com os seus cantares.
Quem teve passado tem mundo, quem tem lembrança alimenta a própria existência. Viver é estar continuamente ligado aos caminhos já percorridos, mesmo quando a memória fere. Porque a dor também é uma forma de recordar, e recordar é uma forma de permanecer vivo.
“… Dorival é um monge chinês. Nascido na Roma negra, Salvador. Se é que ele fez for-tuna, ele a fez. Apostando tudo na carta do amor. Ases, damas e reis. Ele teve e pas-sou (iaiá)Teve o mundo aos seus pés (ioiô)…” O meu Deus é um preto velho. Ele é sábio, velho na dor, velho na poesia, velho na paciência que só o tempo concede. Velho não pela idade, mas pelas trilhas repetidas, pelas histórias acumuladas, pelos conselhos que ecoam. Ele é Deus e é orixá, é Alá e é amor. Meu Deus é amor, e o preto velho é guerra, filho de Xangô, tropa de Oxóssi, tambor aceso, filho da Ganga Zumba, adorador de Mãe Menininha. Meu preto velho é baiano, e o baiano carrega a herança sonora que revela o pensamento que encanta.
Meu preto velho encantou por magia e por história de vida. Encantou porque é de uma linhagem que caminha com os pés no chão e a cabeça nas estrelas. E, como todo Deus, ele é pai, filho e avô. É uma nação inteira concentrada em um corpo só, uma nação negra feita de sangue, de dor e de memória. É a nação que entende que o primeiro gesto de Deus, antes mesmo da bondade, é a perda. Perder é, paradoxalmente, a primeira esperança. Só quem perde se encontra com Deus. Quem se perde, busca Deus.
E quem perde sempre pede a Deus. “…O amor da gente é como um grão. Uma semente de ilusão. Tem que morrer pra germinar…”
Esse preto velho, esse Deus que ontem falou e chorou, me ensinou que as divindades se aproximam quando a gente já não sabe como prosseguir. Foi com ele que percebi que a dor não é ausência de fé, é o movimento que nos faz entregá-la a alguém que sabe carregá-la. Preto velho conhece dor porque conhece vida. Conhece o peso de sobreviver, mas também o poder de levantar. Ele sabe que as perdas são feridas abertas, mas também portas para um retorno silencioso ao sagrado.
Quando um Deus chora, ele não diminui, ele nos autoriza a chorar. Deus que não chora não me serve. Prefiro os deuses cansados, aqueles que, mesmo feridos, permanecem de pé. Prefiro os deuses que não se arrogam omnipotentes, porque os deuses que exageram na força não sabem devolver nada ao coração da gente. Quero os deuses que guardam uma fresta humana, que se curvam um pouco quando falam, que recolhem as lágrimas e as transformam em oferenda.
“…Extra entra por favor. Extra abra-se cadabra-se o temor. Eu, tu e todos no mundo. No fundo tememos por nosso futuro. Et e todos os santos valei-nos. Livrai-nos desse tempo escuro, lá lá lá la…”
O Deus de ontem era esse. Um preto velho que viveu o bastante para compreender a repetição do mundo, mas ainda assim escolheu a delicadeza. Viveu as quedas, mas decidiu caminhar com firmeza. Atravessou os silêncios, mas escolheu cantar. Ele me disse, sem dizer, que viver é suportar a lembrança do que fomos, sem perder a fé no que ainda podemos ser. Disse que o mundo pode ser pesado, mas que existe beleza até nos cacos. Disse que quem ama carrega, e quem carrega sabe que o peso, às vezes, é bênção.
Ele falou do passado sem nostalgia. Falou como quem recolhe os fios e tece uma rede que sustenta. Disse que, quando a lembrança doer, é sinal de que ela foi verdadeira. Disse que os mortos não nos abandonam, apenas caminham na frente. Disse que a saudade é o tambor mais antigo da humanidade. E quando ele disse isso, eu entendi que o amor, quando é grande, nunca cabe inteiro no presente, ele transborda para o futuro.
“O melhor lugar do mundo é aqui e agora…”
Por isso, ontem, ao ouvir esse Deus, fui tomado por uma espécie de reverência terna. Não aquela reverência distante, mas a que nasce do reconhecimento. Um Deus que carrega as marcas do tempo, que fala com voz cansada e firme, que revela sua fraqueza sem perder a grandeza. Um Deus que acolhe, que explica, que afaga, mesmo quando fala de dor. Um Deus que me olha sem julgamento, porque já viu de tudo. E é por ter visto de tudo que me ensina a ver.
Saí dali em silêncio, atravessado por uma gratidão que não busquei nomear. Senti que, de algum modo, aquele encontro me recolocou no eixo. Como se o preto velho, com as mãos lentas, tivesse ajeitado um pouco do meu espírito torto. Como se ele tivesse dito, sem palavras, “Vá. Continue. É assim mesmo.”
“Andar com fé eu vou. Que a fé não costuma falhar…”
E eu continuei, mais leve, mais consciente, mais ligado ao que fui e ao que ainda sou.
Porque ontem, ao ouvir um Deus, eu não encontrei respostas. Encontrei companhia. E talvez seja isso que a gente mais precisa, não de certezas, mas de alguém que segure o peso da vida por alguns instantes, para que a gente possa respirar. Ontem, eu ouvi um Deus. E, no reflexo do olhar dele, vi um pouco de mim.
Obrigado Gilberto Gil.
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