
O artigo do escritor Palmarí de Lucena denuncia a deportação de venezuelanos pelos EUA para a megaprision de El Salvador, “onde sofreram tortura, espancamentos e abusos sexuais, resultado de um acordo secreto financiado com recursos públicos”. A prática revela a terceirização da violência estatal e a erosão de limites éticos democráticos. No Brasil, o apoio de certos parlamentares ao “modelo Bukele” repete essa lógica autoritária, propondo até enviar brasileiros a prisões estrangeiras. “A questão central é moral: que sociedade legitima tais atrocidades?”, indaga. Confira íntegra...
A denúncia apresentada pela Human Rights Watch e pela Cristosal expõe uma realidade que ultrapassa o debate migratório e alcança o núcleo ético das democracias contemporâneas. Segundo o relatório, 252 venezuelanos foram deportados pelos Estados Unidos para El Salvador e entregues a um sistema prisional cuja brutalidade é amplamente documentada. Não se tratou de um erro administrativo, mas de uma política deliberada, financiada e marcada pela opacidade institucional. As descrições de celas imundas, água infestada de vermes, espancamentos, tortura psicológica e casos de violência sexual revelam a degradação humanitária a que esses homens foram submetidos. Nada disso condiz com os valores que os Estados Unidos tradicionalmente afirmam defender.
A responsabilidade, contudo, não recai apenas sobre o governo salvadorenho. Um acordo secreto destinou quase cinco milhões de dólares do orçamento americano ao regime de Nayib Bukele, transformando os EUA em participantes diretos de um modelo punitivo que viola direitos fundamentais. A justificativa oficial — a remoção de “criminosos perigosos” — desmorona diante das evidências de que muitos dos detidos eram migrantes comuns, sem antecedentes, fugindo da fome ou da perseguição política. A deportação para uma megaprison sabidamente violenta não é apenas uma decisão administrativa: é a renúncia explícita a limites éticos mínimos.
Esse episódio ilumina uma tendência preocupante: a normalização da terceirização da violência estatal. Quando governos democráticos entregam seres humanos a sistemas que praticam tortura, extrapolam-se fronteiras fundamentais entre o poder e a barbárie. Democracias se sustentam sobre o compromisso de não submeter pessoas a sofrimentos previsíveis — e ao violá-lo, perdem não apenas reputação, mas credibilidade moral.
Essa lógica, porém, não se limita ao eixo Washington–San Salvador. No Brasil, parte do campo político passou a tratar o “modelo Bukele” como uma solução instantânea para a criminalidade, ignorando as graves denúncias de violações sistemáticas de direitos humanos em El Salvador. O exemplo mais notório é o do deputado federal Eduardo Bolsonaro, que divulgou em vídeo conversas com aliados de Donald Trump para exportar imigrantes brasileiros detidos nos EUA diretamente ao CECOT. O parlamentar afirmou ter buscado classificar facções brasileiras como “grupos terroristas” nos Estados Unidos, abrindo caminho para enviar cidadãos nacionais para o mesmo sistema denunciado no relatório.
A proposta é juridicamente controversa e moralmente alarmante. Ao sugerir que brasileiros — culpados ou não — sejam enviados a uma prisão estrangeira marcada por violações, Eduardo Bolsonaro sinaliza a disposição de substituir garantias constitucionais por um punitivismo de espetáculo. Esse entusiasmo político revela uma tentação maior: importar soluções autoritárias embaladas como eficiência, mas sustentadas pela erosão de direitos fundamentais e pelo rebaixamento do patamar civilizatório.
O custo institucional desse discurso é incalculável. Democracias sólidas não entregam seus cidadãos a regimes de exceção e não tratam a dignidade humana como variável descartável do debate político. A retórica que romantiza superencarceramento e ignora tortura não oferece segurança — oferece apenas a ilusão de ordem construída sobre o sofrimento alheio.
Seja nos EUA, ao financiar estruturas violadoras, seja no Brasil, ao defender sua importação, o que se observa é a mesma lógica: a substituição do devido processo por um paradigma policialesco que enxerga a punição como espetáculo e o corpo do outro como território disponível para políticas de força. Quando representantes eleitos defendem transformar brasileiros em matéria-prima para experiências punitivas estrangeiras, o debate deixa de ser sobre crime e passa a ser sobre valores — sobre o país que queremos ser e sobre o limite ético que estamos dispostos a preservar.
Ao final, permanece a pergunta que atravessa todas essas camadas: que tipo de sociedade tolera, financia ou defende atrocidades cometidas em seu nome? A resposta a essa pergunta, mais do que qualquer slogan de combate ao crime, definirá a integridade moral e a qualidade democrática dos Estados Unidos, do Brasil e de qualquer nação que se veja tentada a confundir autoritarismo com autoridade.
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