
Em seu texto, o cineasta Durval Leal Filho assume, desde o início, que não pretende agradar nem bolsonaristas, nem petistas, e alerta: “não serei amado e pouquíssimo tolerado!” Lembra de que a desilusão com a política tenha levado a anular seu voto, e “ao anular, tornei-me cúmplice de não ter votado em um poste e de ter permitido que um baixo clero, de baixíssima patente militar e intelectual, chegasse aonde chegou”. Confira íntegra...
Não vim aqui para agradar, muito menos para convencer, ainda que isso signifique, desde o início, assumir que não serei amado e pouquíssimo tolerado!
Começo este texto avisando de pronto: não vou agradar nem a Bolsominios devotos do mito, nem aos Petralhas perdidos na corrida atrás do próprio rabo.
Não devo satisfação a torcida organizada de lado nenhum, sou uma estrela solitária convicto. De pronto avisei, inclusive para mim mesmo e aos pares próximos, na eleição de 2018: não vou sujar minha cara de merda votando em Bolsonaro. Digo isso porque já sei o que é pegar em merda. Fiz isso quando ajudei a fundar o PT, de João Pessoa, em 1980, ainda um moleque anarquista imberbe.
Ah, como seria bom se o diretório tivesse hoje a lista dos que assinaram e contribuíram naquele momento. Eu gostaria de ver meu nome ali, ver o quão belo é um insano jovem de 17 anos que ainda acreditava ser anarquista, graças a Deus. Era um tempo em que se pensava que rasgar o velho bastava para criar o novo, como se a história não tivesse espessura, nem cheiro.
Carrego, desde sempre, um problema sério com o olfato. Às vezes funciona bem, às vezes me nega. Talvez por isso eu tenha anulado meu voto. Ao anular, tornei-me cúmplice de não ter votado em um poste e de ter permitido que um baixo clero, de baixíssima patente militar e intelectual, chegasse aonde chegou. Tentou até golpe forjado. Como eleitor, reconheço, desde cedo peguei e fiz muita merda.
Tenho certeza em não ter votado em Collor, nem em FHS, e só ter votado duas vezes no LULADRÃO(!?), ou no não absolvido, e em hipótese alguma votaria em Bolsonaro.
Com o tempo, tenho tentado ser seletivo, sob pena de repetir velhos erros com novas embalagens. A tristeza não é só pela escolha de agora, mas pela soma de todos os maus cheiros que se acumulam na memória.
Para mim, tudo começou a feder de vez no lixo de Santo André, com o assassinato cruel de um jovem e promissor quadro do PT, Celso Daniel, em janeiro de 2002. Ali se quebrou a promessa de que aquele partido seria diferente. Tudo desandou quando alguns “companheiros” se revelaram, quando se começou a enxergar a formação da primeira malta, a primeira alcateia, a matilha, o bando. A cidade de Santo André, valha me Deus, do final da década de 1990, era metáfora de uma prefeitura diferente, uma prefeitura Petista, metáfora virou em algo mais profundo: o cerne da maldade humana, da ganância e da disputa pelo controle do lixo, o lixo literal e o lixo moral para fazer politica suja.
Enquanto Celso Daniel era morto em torno de um escândalo de lixo que não podia ser revelado, o senhor poliglota FHC acabará de salvar o Banco Nacional para resguardar a família e suas gerações. Dois movimentos paralelos, duas faces da mesma moeda: de um lado, o sacrifício de uma liderança que poderia fazer sombra num partido de líder único, de outro, a proteção de um clã financeiro sob o manto da “governabilidade” e da “estabilidade econômica”. Tudo narrado como se fosse o preço natural da civilização.
Esses dois pontos de vista, a morte de uma liderança interna e o salvamento de um banco privado, não são episódios isolados. Revelam um país onde o que está em cima é igual ao que está embaixo, como no velho Ouroboros, a serpente morde o próprio rabo, e o sistema se alimenta da própria podridão. Quando uma liderança que poderia disputar o protagonismo é destruída, não é apenas um indivíduo que cai: é a possibilidade de ruptura dentro da máquina partidaria que é eliminada.
O problema é que o cerne da maldade humana não escolhe partido. Todos se tornam iguais diante da ganância, do ego e do poder. A diferença é apenas de cenário e de figurino. Felizmente, ou tragicamente, quase todo ser humano quer, no fundo, ser amado. Eu também desejo ser amado, mas me basta ser suportado e compreendido pelos poucos que me cercam e toleram essa minha memória insistente, que não se deixa embrulhar em jornal velho RODRIGUIANO.
Essa memória me lembra que a arte é cruel. Lembro do ladrão boliviano, de Nélson Rodrigues, como metáfora perfeita do Brasil quando se relaciona com banqueiros, Congresso e Palácio. O ladrão boliviano rouba a mulher, o filho, o dinheiro e, de quebra, a moral e a indignação. Hoje, a relação entre o sistema financeiro, o Legislativo, Judiciária e o Executivo não é muito diferente: todos se entrelaçam num jogo em que ninguém é inocente, e a vítima é sempre difusa, coletiva e anônima.
O mensalão, por exemplo, é o reflexo direto do presidencialismo de coalizão, desse sistema de composição permanente em que não se governa sem comprar apoio, com corrupção, diga lá o absolvido Zé Dirceu. A Lava Jato, por sua vez, será lembrada na continuação no que se tornou o “Banco Master” essa nova etapa desse jogo, não pelos nomes envolvidos, mas pela forma como transformou a ideia de justiça em espetáculo e moeda política. Tudo é a mesma coisa, sempre, em embalagens variadas. Basta lembrar retrospectos dos Habeas corpus para banqueiros.
No Congresso, a camareira, a secretaria, o gabinete, o assessor, o lobista, todos orbitam o mesmo centro de gravidade do laranjal. São personagens de um teatro em que se misturam poderosos e entre frutos podres das laranjeiras, cada qual com seu papel na engrenagem. À volta do presidente, qualquer presidente, há sempre uma constelação de intermediários, atravessadores e operadores prontos a fazer o “serviço sujo” que não pode aparecer na foto oficial. Lembrar da Casa da Dinda, PC Farias, lembrar dos cinco anos de convencimento que Sérgio Mota armou, e lembrar dos vários operadores do Lula I e II, uma infinidade de nome difícil de ser copiada.
Minha tristeza não está em ter aprendido a ler, como diria o sábio negro ébrio. Ao contrário: ler foi a abertura para a solidão critica. Minha tristeza é lembrar demais. Lembrar de casos como o do Banco Marka-FonteCindan, e o Sr. Salvatore Cacciola, Daniel Dantas do Opportunity, Banco Nacional, Bamerindus e esse atual Master, é a confirmação de toda uma arquitetura jurídica desenhada para tornar o irreversível, reversível. São nomes e casos que se empilham e se confundem, mas que sempre giram em torno do mesmo eixo: a blindagem dos interesses de poucos às custas da maioria.
O Brasil que recordo, e que ainda é o de hoje, é um país que se repete. As dinastias do Judiciário e do Legislativo se revezam, mas não se extinguem. Lembrar que teremos Ministros partidarios, no STF, pelos próximos 30 anos. Juízes, desembargadores, ministros, senadores, deputados, todos orbitam numa esfera em que a renovação é apenas de rostos, nunca de estruturas.
O Executivo, por sua vez, dança conforme a música tocada por esses mesmos grupos, ainda que, de tempos em tempos, surja alguém prometendo romper com tudo isso. No fim, a serpente segue mordendo o próprio rabo.
No meio de tudo isso está o eleitor. Não o mito abstrato da “cidadania”, mas o eleitor concreto, muitas vezes analfabeto, quase sempre mal-informado, frequentemente cego pela paixão de torcida. Ele é também conivente, não porque seja naturalmente corrupto, mas porque foi educado para repetir a mesma escolha, meter a cara na mesma merda, acreditar que, desta vez, “vai ser diferente”. Eu, que já peguei nessa merda, não falo de fora. Falo como parte do problema que fiz quando jovem, mas não absolvo minha insanidade infantil.
Se há algo que me resta, depois de tantas idas e vindas, é a memória. Não uma memória nostálgica, mas uma memória crítica. Lembro das assembleias, das listas de assinaturas, das ilusões de juventude, da certeza de que estávamos construindo um outro país. Lembro também do momento em que começou a feder, quando percebemos que, dentro do “nosso” lado, também havia bando, alcateia, malta, e que o poder corrompe até quem jurava combatê-lo.
A memória crítica coletiva é, talvez, o único antídoto contra a repetição infinita desses escândalos. Quando esquecemos o que foi o Banco Nacional, o banco Marka-FonteCindan e o Opportunity, os casos arquivados, as provas anuladas, os votos monocráticos, abrimos caminho para que novos bancos, novos esquemas, novos “mestres” do sistema façam a mesma coisa de novo. Cada escândalo bancário não é apenas um crime financeiro, é um ataque à confiança social, um recado de que a regra vale para uns e não vale para outros.
Os protagonistas desses enredos, banqueiros, operadores, lobistas, não agem sozinhos. Em torno deles, estão sempre os atores do Legislativo, do Judiciário e do Executivo, quem cria leis sob medida, quem interpreta a norma conforme o cliente, quem assina decretos que beneficiam grupos específicos. São engrenagens articuladas. Um banco não se salva com dinheiro público sem a assinatura de alguém. Uma delação não se anula sem o voto de alguém. Uma CPI não morre sem o silêncio de muitos. Estão silenciando os asseclas, cabeludas e careca, que assaltaram os idosos do INSS.
Por isso, recordar é mais do que remexer em feridas antigas, é recusar a naturalização da safadeza institucionalizada. A memória crítica coletiva exige que não deixemos os nomes, os fatos e as decisões se dissolverem como jornal que embrulha peixe na feira. Exige que lembremos quem salvou que banco, quem anulou que processo, quem votou como em 2007 ou 2021, quem se beneficiou da confusão. Não para alimentar ódio raso, mas para impedir que a história seja recontada como se tudo tivesse sido um mal-entendido.
No fim, esta “infinita highway escatológica” em que caminhamos, entre escândalos bancários, pactos de bastidor e gestos de conivência, só será interrompida se formos capazes de sustentar uma memória coletiva que não se deixe comprar, nem cooptar. Uma memória que olhe para banqueiros, parlamentares, juízes e presidentes não como mitos salvadores, mas como agentes responsáveis por decisões concretas, com consequências reais. SEM ANISTIA, E CADEIA PARA OS NÃO ABSOLVIDOS.
Escrevo isso não para agradar, mas para lembrar, a mim e a quem ainda tiver paciência, de ler, pois poucos leem, que, enquanto fingirmos não saber onde metemos a cara e em que merda já pegamos, continuaremos a repetir os mesmos erros. A memória crítica é o mínimo de dignidade que podemos reivindicar num país onde o esquecimento sempre foi a melhor blindagem dos donos do dinheiro e dos donos do poder.
Ao amigo professor de história, com memórias de internet.
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