PENSAMENTO PLURAL O cofre da eleição e o copo da obra, por Palmarí de Lucena

O artigo do escritor Palmarí de Lucena critica o contraste no Orçamento de 2026 entre o alto volume destinado ao Fundo Eleitoral e a fragilidade dos investimentos públicos essenciais. Enquanto cerca de R$ 4,9 bilhões garantem a máquina eleitoral, obras, saúde, educação e ciência sofrem contingenciamentos. O texto aponta ainda desvios e fraudes associados ao Fundão, questionando a moralidade das prioridades estatais. Conclui que o Brasil financia bem campanhas, mas investe pouco na infraestrutura que sustenta a democracia e a dignidade social. Confira íntegra...

No Orçamento de 2026, o Brasil seguirá vivendo uma de suas cenas mais emblemáticas: o cofre da política abre-se com facilidade, enquanto o copo dos investimentos costuma ser servido pela metade. Em plena escassez de recursos para aquilo que faz um país andar — estrada, escola, hospital, ciência, saneamento —, a máquina eleitoral continua bem azeitada, segura, imune aos cortes que esfolam quase tudo o que não seja obrigação formal do Estado.

O Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado “Fundão”, manterá a altura de sempre: cerca de R$ 4,9 bilhões. É o bolo destinado à disputa política, fatiado entre partidos e candidatos, embalado como garantia de democracia, mas percebido por muitos cidadãos como um luxo em país onde faltam calçadas, sobram filas e hospitais pedem socorro.

Do outro lado da planilha, estão os investimentos públicos federais — aquilo que realmente transforma o país em concreto, livro, leito e ponte. Para 2026, o governo prevê algo em torno de R$ 85 bilhões para investimentos. Pode parecer uma cifra robusta, mas é preciso lembrar que esse é o pedaço mais frágil do orçamento: o primeiro a sofrer bloqueios, contingenciamentos e adiamentos. É o dinheiro que, quando aperta, evapora.

E então vem o contraste que não cabe numa vírgula: os quase cinco bilhões do Fundão equivalem a mais de 5% de tudo o que a União planeja investir no Brasil em um ano inteiro. Não são trocados. Não são migalhas. São estradas que não existem, escolas que não se reformam, creches que não se abrem, postos de saúde que não chegam.

Mas o drama não é apenas o volume. É o destino. Porque não bastasse o Fundão ser volumoso, parte dele tem sido vítima de um velho vício brasileiro: a apropriação privada do dinheiro público. As investigações policiais e denúncias do Ministério Público revelaram um cardápio de práticas tão conhecidas quanto vergonhosas — candidaturas-laranja, empresas de fachada, serviços inexistentes, notas frias, consultorias fantasmas, contratos superfaturados. O dinheiro que deveria irrigar campanhas limpas escorre, em alguns casos, para bolsos escuros.

Há esquemas em que o candidato existe só no papel, enquanto o recurso viaja livre para estruturas partidárias, cabos eleitorais e intermediários profissionais do desvio. Em outros, o Fundo financia escritórios “jurídicos” que não advogam, gráficas que não imprimem e produtoras que não produzem — exceto relatórios fictícios. A democracia, financiada, vira figurante de um teatro caro e opaco.

O paradoxo salta aos olhos: enquanto o Estado luta para manter hospitais funcionando, protege religiosamente o financiamento da própria disputa política — ainda que parte desse dinheiro se perca no labirinto da trapaça. O país aperta os cintos, menos o da eleição. A nação economiza no futuro, mas banca generosamente o presente da propaganda.

Há quem defenda o fundo dizendo que política custa, que democracia não é barata e que o financiamento público evita a promiscuidade entre empresas e partidos. Tudo isso é verdade — mas também é verdade que democracia não vive só de campanha. Vive de escola aberta, de médico no posto, de estrada transitável. Democracia também se alimenta de dignidade. E dignidade não combina com dinheiro público desfilando em prestações de contas cenográficas.

Quando o orçamento encolhe, sempre sobra pouco para o que importa muito. Cortam-se obras, comprime-se a ciência, atrasa-se a reconstrução, posterga-se a esperança. O Fundão, no entanto, atravessa ileso — como se o país pudesse ser governado eternamente sobre palanque, mas não sobre alicerces.

Em 2026, o Brasil novamente escolherá seus representantes. Mas já escolheu, silenciosamente, suas prioridades. E elas continuam dizendo mais sobre proteção ao sistema do que sobre cuidado com as pessoas. A república investe bem em se eleger. O drama é que investe menos em existir.

E assim seguimos: um país que sabe financiar discursos, mas hesita em financiar soluções. Um país que coloca luz sobre a urna e sombra sobre a obra. Um país que investe mais em convencer do que em construir.

No fim, a pergunta que sobra não é contábil. É moral: quanto custa uma eleição — e quanto vale um Brasil?

 

 

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