
Em seu texto, o cineasta Durval Leal rememora personagens que acompanhou ao longo de sua trajetória como Jesus Jefferson, que iria conhecer durante das filmagens do Auto da Compadecida, em Cabaceiras, e se apresentava como uma figura singular. Um sujeito que nasceu “nas margens do Rio Paraíba, nas divisas Congo e Cabaceiras, naquele sertão de sol e areias claras, que não perdoa ninguém”, e trabalhava num circo de quinta categoria, mas tinha muitas lições a dar. Confira íntegra…
“Pronto, falei!!”
“Só falei porque você é tão artista como eu. E, tem sentimentos… Dentro de mim mora uma drag queen, Duvalino, meu amor, adoro o Durval Lélis, é meu rei, você não faz ideia da tristeza que é ser viado pobre. Não é tristeza de novela, não. É daquelas que racham o calcanhar, que queimam o couro no sol da caatinga e ainda pedem pra você sorrir no picadeiro.”
Assim continuei ouvindo… “Desde os meus 14 anos, quando dei meu primeiro “bode”, como quem tropeça na própria coragem, que a vida deixou de ser fácil. Às vezes até fica boa, eu não vou mentir, mas fácil não é. Nunca foi.”
Assim, por volta de agosto de 1998, eu me deparei com Jesus Jefferson, JJFF, nunca entendi por quê, mas foi assim que ele se apresentou. “JÊ”, para os íntimos, como ele pedia que eu o chamasse. E perguntou se podia me chamar de Duvalino.
“Você já me viu, Duvalino. Já me filmou em circo, em praça, em festa sem cachê, em apresentação paga com lanche e promessa. Já me viu montado pela metade, já me viu desmontado por inteiro. O que eu tô dizendo é a pura verdade, vocês não sabem o que é dor, o que é dificuldade, o que é se montar sem dinheiro e ainda assim ter que fazer rir, fazer brilhar, fazer acontecer.’
Eu tinha 35 anos, ele, 56. Encontrei Jefferson durante a produção da minissérie e filme O Auto da Compadecida, no Cariri da Paraíba, quando eu buscava pessoas para apoiar nos serviços de caracterização da cidade, nessa fase era a logística de hospedagem e transporte, no deslocamento entre Boqueirão e Cabaceiras, para preparar a cidade que seria cenográfica.
Ali, em um circo, talvez em São Domingos do Cariri, procurando profissionais, e referências locais, encontrei Jesus Jefferson. Foi muito divertido, porque, depois disso, por muito tempo, eu sempre o reencontrava em viagens pelo Cariri, nem sempre no mesmo circo. Era daquelas pessoas que você não teria a capacidade de inventar, tal personagem.
“Eu, Jefferson, vixe Jesus. Olha que desgraça de nome pra um viado pobre do interior. Eu odeio esse nome. Jefferson é fresco duas vezes, com esse duplo ff, parece nome inventado em cartório de gente que nunca pisou na poeira de Cabaceiras. Eu quase mato uma bicha sarará que uma vez me chamou: Jefferson, Jefferson! como se estivesse anunciando artista de Hollywood.”
Jefferson nasceu nas margens do Rio Paraíba, nas divisas Congo e Cabaceiras, naquele sertão de sol e areias claras, que não perdoa ninguém. Ele trabalhava num circo de terceira categoria, rodando no Cariri com Boqueirão como raio dos arredores, num mundo onde o glamour era só uma palavra bonita colada na lona furada. O circo era isso: um amontoado de gente tentando sobreviver, uma família improvisada, um palco que era, ao mesmo tempo, fuga e prisão.
Quando o povo de cinema começou a aparecer por lá, produzindo filme na cidade, atrás de paisagem cênica e de pobreza fotogênica, as vezes nem tanto, foi que eu me deparei com ele. “Duvalino, vocês, gente de câmera, de roteiro, de ação! São diferentes… Adoroooo”.
E, no meio dessa idas e vindas, eu fui percebendo e ouvindo, Jesus Jefferson, e fui entendendo melhor, inclusive essa outra realidade do Bioma.
Eu tinha trinta e poucos anos, estava no sonho. E ele, no pesadelo, no picadeiro, já tinha passado dos cinquenta. Sua alma era mais velha do que seu corpo. Já tinha apanhado, já tinha sido expulsa, já tinha dormido em quarto emprestado, em camarim fedorento, em caminhão de mudança. Ele falou do seu sonho que parecia piada: ser drag queen, deslumbrante.
“Um viado pobre sonhando com salto alto, cílio postiço e palco iluminado, coisas de louca…”. Era 1998, o mundo começava a falar de liberdade, o filme australiano Priscilla – A Rainha do Deserto, de 1994, rodava nas locadoras, o movimento gay ganhava voz, mas a realidade ali, na beira da caatinga, era outra conversa, esta pra la de Geni.
“Duvalino… Eu sonhava em ser uma daquelas drags lindas de revista, de filme, de cartaz”. Achei maravilhoso, pois era um roteiro pronto. Só que, era uma criatura extremamente pobre, um homem, um cidadão atolado na miséria, com sonho que vinha com boleto vencido, fome atrasada e insulto adiantado. Miséria é isso, não é só não ter dinheiro, é não ter escolha. E ainda assim inventar uma.
No circo, ele vivia num mundo de terceira a quinta categoria, como artista e como gente. Quem tá na base da pirâmide aprende cedo que existe um círculo pra cada tipo de pessoa, e que viado pobre, afeminado e drag de meia sola é sempre empurrado pra borda, pra sombra. Só que dentro de qualquer ser humano: “Duvalino, tem um mundo inteiro. Dentro de mim moram várias pessoas: o menino assustado, o homem cansado, a bicha debochada, a drag queen que ainda não tinha nome, mas eu tenho atitude.”
Foi assim que eu fui enxergando suas dificuldades e, ao mesmo tempo, me segurando na única coisa que eu tinha para lhe ajudar, ouvi-lo, e como minha interesse, pois via ali um filme pronto, era ter paciência e consciência para tentar aprender com ele.
“A pobreza, meu amigo, não é só falta de dinheiro. É não poder comprar um batom que preste, um pó que não deixe a cara parecendo reboco rachado, um par de cílios que não caia no meio do número. Você olha as fotos das drags nas revistas, todas lindas, montadas, cheias de brilho, colar, peruca, salto, e depois olha pra sua bolsinha de plástico com três bagulhos vencidos e um lápis de olho pela metade. É um choque.”
“Duvalino… Eu já usei colar de tampa de garrafa, sim. De tudo quanto foi tampa. Porque dava brilho, e no escuro do picadeiro o público só via o que eu fingia que era. De longe, com luz colorida e fumaça de gelo seco vagabundo, tudo parecia glamouroso. Ainda bem que o palco do circo é um pouco longe, mal iluminado e o povo enxerga mal. De perto, o que tinha era só improviso, suor e maquiagem borrada.”
Eu descobri, numa dessas viagens nas caatingas afora, a maravilha do Sol a Pino, Sol. “Duvalino Pinho Sol era quase um personagem na minha vida. É a coisa mais necessária que já vi, minha gente. Tem um cheiro maravilhoso, é quase de graça e a tampa ainda serve pra um bocado de coisa”.
Quem nunca usou tampa de produto de limpeza como adereço é porque nunca foi pobre o suficiente pra ser criativo. Via crianças brincando de jogar botão, vi meninas brinco de casinha, as tampas eram moveis.
Aí eu perguntei: “Mas, Jefferson, onde é que eu encontro esses profissionais aqui na região?” Ele respondeu: “Aqui você até encontra o Pinho Sol, meu bem. O que você não vai achar é homem inteligente, pobre, pra ganhar o que vocês querem pagar. Isso não existe. Vá procurar em outro lugar”.
“Porque não é só o perfume que custa, o povo fede, mas tem dignidade.”
Aquele circo era seu mundo. Terra batida, lona quente, público bêbado às vezes, criança gritando, cachorro passando no meio da apresentação. Mas também era o único lugar onde eu podia vê-lo em ação, pelo menos por alguns minutos, aquilo que eu realmente queria filmar esta em plena encenação: exagero, brilho, drama, risada. Viado, drag, gente. Fazia-me lembrar o filme Palácio do Riso, de Vânia Perazzo, que fiz o som direto, em 1990, uma produção da Bulgária.
“Eu vivoa rodando a caatinga, vendo as cercas de arame farpado desenhando cicatrizes no horizonte, as casas de taipa, as famílias tentando driblar a seca e a fome. E, no meio dessa paisagem toda, lá ia eu, com uma mala remendada cheia de fantasia pobre, tentando transformar desgraça em espetáculo. A precariedade era tão grande que, às vezes, o figurino furado parecia luxo.”
O desprezo, esse, era ainda mais pesado que a mala. O olhar atravessado, o riso de deboche, as piadinhas sobre “viado de circo”, “bicha pobre”, “homem que se veste de mulher”. Eu ouvia todo esses comentarios e ficava trsite com a situação de Jefferson, mas ele engolia quase tudo, e devolvia em forma de ironia no microfone. O humor virava defesa. Eu via sua graça pra sobreviver, mas também pra esfregar na cara do povo que ele estava ali, que ele existia, e que ele se importava com o espetáculo…
“Duvalino, no fim das contas, o que me salvou foi essa consciência teimosa: a de saber que o problema não era eu ser viado, drag, pobre. O problema era o mundo que não dá espaço pra tantas humanidades possíveis. Querem todo mundo dentro da mesma roupa, da mesma reza, da mesma regra. Quem escapa, apanha. Quem insiste, vira piada. Mas dou gargalhada e choro sozinho”.
Eu aprendi, com ele, que cada pessoa carrega uma multidão dentro de si. Não é coisa de “LGBTQIA+”, não. É coisa de ser humano. Dentro de cada um tem uma criança assustada, um adulto cansado, uma velha sábia, uma drag silenciosa, um palhaço triste, um santo hipócrita, um pecador honesto. Tem de tudo. O que falta é coragem, e, muitas vezes, condição, pra deixar essa gente toda aparecer e brilhar.
No circo, eu via isso o tempo todo: o trapezista que morria de medo de altura, o palhaço deprimido, o homem forte cheio de inseguranças, a bilheteira tentando criar os filhos sozinha, a cozinheira que cantava melhor que muita estrela de televisão. Todo mundo ali tentando sobreviver e, ao mesmo tempo, ser um pouco mais do que a miséria deixava.
Eu vi de perto, que uma drag queen sem nome famoso, pobre e mal maquiada, aprendi a olhar pro outro sem tanto julgamento.
“Duvalino, eu queria que me vissem além do rótulo de viado de circo, por isso no fim das contas, encontrei meu nome – DOROTTY GREEN, não para parecer piada mas um confronto um ódio com a secura cinza da caatinga. Aí, eu senti que também precisava enxergar além dos rótulos que os outros impõe nos outros, desde o carroceiro, o fazendeiro, a beata, ou do menino que ria de DOROTTY GREEN na plateia.
“Duvalino, cada um deles também tem um circo ambulante por dentro.”
E é aí que entra o humor crítico. Ele ria dele mesmo, ria da situação, ria das tragédias, não por achar graça no sofrimento, mas por recusar a se deixar esmagar por ele. O riso era seu protesto, sua arma, seu salto alto invisível. Quando ele se imitava madame rica, pastor hipócrita, político ladrão, ele tava era dizendo: “Olha, minha gente, o ridículo não é eu me montar de drag queejn. Ridículo é esse mundo que faz tanta força pra manter uns em cima e outros eternamente embaixo”.
Hoje, olhando pra trás, vejo que aquela precariedade toda, a lona rasgada, o camarim improvisado, o colar de tampa de garrafa, a maquiagem barata, me ensinou mais sobre humanidade do que qualquer sala de aula. Eu aprendi a reconhecer o valor da diferença, a importância de se pôr no lugar do outro, mesmo que por alguns minutos, mesmo que seja num palco improvisado em plena caatinga.
Porque consciência. Não é só saber das coisas. É sentir o peso e a leveza da vida dos outros sem transformar ninguém em caricatura barata. É entender que tem gente que nunca pôde se montar nem por dentro, porque o mundo não deixou. É olhar pro viado pobre do circo, pra drag queen malfeita, pro trabalhador cansado, pra mulher esfolada pela vida e pensar: Eu não preciso gostar, nem entender, mas eu respeito. Porque ali também tem um universo inteiro que eu não conheço.
Dentro de mim mora uma drag queen que sobreviveu.
Ao sentir as necessidades de um circo de terceira, a caatinga, a miséria, ao deboche, aos colares de Pinho Sol, a jogos de tampa e a muita solidão de pessoas simples. Mas, sobretudo, dentro de mim mora um ser humano que aprendeu, na marra e sem purpurina vencida, que só tem sentido existir se for sem preconceito com as humanidades possíveis. Obrigado Jesus Jefferson, meu querido “JÊ”.
Se o mundo é esse grande picadeiro, que pelo menos a gente aprenda a não vaiar o outro antes de saber a história por trás da maquiagem. Porque, no fim das contas, todo mundo tá só tentando, do seu jeito torto, não cair do trapézio da própria vida. E, se for pra cair, que seja com um pouco de brilho, uma gargalhada sincera e um mínimo de respeito pela dor que o outro carrega debaixo do figurino. E com um nome e se sentindo a estrela DOROTTY GREEN.
A MINHA QUERIDA LOBETE!!
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