PENSAMENTO PLURAL A guerra às drogas sob risco de contradição, por Palmarí de Lucena

O comentário do escritor Palmarí de Lucena critica a incoerência da política antidrogas de Donald Trump, que combina retórica bélica e operações militares contra suspeitos com o perdão a um ex-presidente condenado por tráfico internacional. A postura expõe uma “guerra seletiva”, guiada por conveniência política e alinhamento ideológico, não pela lei. “Ao relacionar o caso ao Brasil, o texto denuncia a repressão concentrada nos pobres e a tolerância às elites, defendendo inteligência, combate à corrupção e coerência institucional como caminhos reais”, diz. Confira íntegra...

A retomada do discurso de confronto direto ao narcotráfico pelo governo dos Estados Unidos trouxe novamente o tema ao centro da agenda internacional de segurança. Ao mesmo tempo, decisões recentes da administração Trump suscitam questionamentos relevantes sobre coerência, legalidade e efetividade dessa política. A concessão de perdão presidencial ao ex-presidente de Honduras Juan Orlando Hernández, condenado por tráfico internacional de drogas, colocou em evidência uma tensão entre discurso e prática.

A medida não foi acompanhada de esclarecimentos públicos detalhados que justificassem juridicamente a decisão. Diante disso, tornou-se inevitável a comparação entre duas linhas de ação adotadas simultaneamente: de um lado, operações militares contra embarcações suspeitas no Caribe; de outro, a libertação de um ex-chefe de Estado sentenciado por crimes relacionados exatamente ao objeto da política que se diz combater.

É legítimo que governos utilizem instrumentos excepcionais em contextos excepcionais. Também é prerrogativa constitucional o uso do perdão presidencial como possibilidade legal. Contudo, quando tal decisão ocorre em paralelo a uma retórica de endurecimento e a operações letais sem ampla transparência, surgem dúvidas sobre uniformidade de critérios e fundamentos institucionais.

No campo do Direito Internacional, especialistas apontam que o narcotráfico, embora grave, não configura juridicamente um estado de guerra. Isso impõe limites claros à atuação militar e reforça a exigência de respeito ao devido processo legal. O eventual emprego da força, sem comprovação de hostilidade imediata, levanta questões relevantes sobre proporcionalidade e legalidade.

A situação provoca reflexões que também dizem respeito ao Brasil. Não por equivalência de contextos, mas por convergência de desafios. No país, o combate ao tráfico historicamente se concentrou em ações policiais ostensivas em áreas vulneráveis, enquanto o enfrentamento de estruturas financeiras e conexões institucionais do crime avança de forma mais lenta. A discrepância entre repressão direta e combate sistêmico é tema recorrente no debate público.

Assim como nos Estados Unidos, no Brasil a segurança pública frequentemente responde à pressão por resultados rápidos. Isso favorece políticas visíveis, mas nem sempre eficazes a longo prazo. O risco é transformar questões estruturais em ações episódicas, sem atacar as causas profundas do problema.

A comparação entre os dois contextos não autoriza generalizações, mas evidencia um ponto comum: políticas de segurança carecem de coerência interna, clareza jurídica e objetivos mensuráveis. Sem esses elementos, a narrativa de endurecimento tende a perder credibilidade.

Combater o narcotráfico exige coordenação internacional, inteligência financeira, fortalecimento institucional e investimentos em prevenção. O uso da força, quando inevitável, deve observar limites legais claros. Da mesma forma, decisões de alto impacto político, como o perdão a condenados, precisam ser transparentes e fundamentadas.

Sem coerência entre discurso e prática, o combate ao tráfico corre o risco de tornar-se mais retórico do que efetivo. E, nesse caso, perde-se não apenas eficiência, mas também a confiança pública — um ativo indispensável em políticas de segurança.

 

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