PENSAMENTO PLURAL O Coliseu digital e a erosão moral, por Palmarí de Lucena

O artigo do escritor Palmarí de Lucena tece crítica a transformação da violência em espetáculo na política contemporânea e analisa como a exibição reiterada do sofrimento molda afetos, naturaliza a brutalidade e empobrece o debate público. Ao relacionar essa lógica ao contexto brasileiro, o texto alerta para os riscos de exceções permanentes, retórica punitiva e erosão do devido processo legal. Defende que segurança pública exige política de Estado, não entretenimento, e que preservar a dignidade humana é imperativo cívico e institucional. Confira íntegra...

Governos sempre recorreram a símbolos para expressar autoridade. O que distingue o nosso tempo é a conversão da violência em espetáculo. Quando a ação estatal se apresenta como entretenimento e a dor alheia vira conteúdo, não se está apenas comunicando políticas públicas, mas também formando sensibilidades. A linguagem do poder passa a educar sentimentos: o que considerar legítimo, o que tolerar e — mais alarmante — o que aplaudir.

A alegoria de Santo Agostinho sobre Alípio, que entra no Coliseu consternado e sai convertido, ilustra essa dinâmica antiga e atual. Mudou o cenário, não o mecanismo. A arena tornou-se digital, o clamor migrou para as redes e a crueldade ganhou a estética do efêmero. A ferida moral, hoje, não decorre de choques isolados, mas da banalização contínua.

O debate jurídico é indispensável. Ele delimita competências, testa legalidades e impõe freios à ação do Estado. Mas não esgota a questão. Há um nível de análise inescapavelmente cívico: no que a exibição reiterada da violência nos transforma? Governos que comunicam pelo impacto tendem a substituir o argumento pelo efeito e a cidadania pelo aplauso. A política perde substância e ganha plateia.

No Brasil, essa pedagogia do choque também se manifesta. Operações exibidas como espetáculo, símbolos militares naturalizados como solução permanente e discursos que simplificam dilemas complexos moldam percepções coletivas. Quando determinados territórios passam a ser tratados como exceções, relativiza-se a ideia de cidadania plena. A exceção, porém, é sempre um laboratório perigoso: nasce como resposta emergencial e pode terminar como método.

Expressões que exaltam a eliminação do inimigo operam como atalhos emocionais. Produzem a sensação de ordem imediata, mas corroem garantias essenciais. O devido processo, a presunção de inocência e a proporcionalidade não são ornamentos jurídicos: são a base prática da segurança duradoura. Democracias que trocam garantias por catarse obtêm aplausos de curto prazo e fragilidade institucional no longo.

Há ainda a dimensão social do espetáculo. Plataformas digitais amplificam conteúdos que chocam, e a audiência, muitas vezes, remunera a exposição da dor. Influenciadores, montagens e comentários que estetizam a tragédia não apenas refletem a cultura, mas a reforçam. O Coliseu de hoje é colaborativo: o público não só assiste, como impulsiona.

Autoridades, por sua vez, têm responsabilidade ampliada. Quando linguagem e gestos oficiais naturalizam a desumanização, o debate público perde densidade e a violência se torna mais tolerável. O resultado tangível aparece nas periferias, nas cadeias superlotadas e nos erros que não admitem reversão. O custo é humano e institucional.

A história oferece lições. Abraham Lincoln, em meio a uma guerra civil, escolheu a sobriedade e a conciliação como horizonte moral. Governar, ensinou, é também formar o caráter cívico. Países marcados por desigualdades e traumas autoritários, como o Brasil, demandam uma pedagogia compatível com o Estado de Direito: firme na lei, contida na linguagem, exigente na política pública.

Segurança pública não é espetáculo, é política de Estado. Requer inteligência, prevenção, investigação de qualidade, cadeia de custódia, controle externo e transparência. Exige, sobretudo, dignidade — para agentes e cidadãos. A força sem limite degrada a autoridade; a norma sem humanidade perde legitimidade. O ponto de equilíbrio é difícil, mas definidor.

A tecnologia levou o anfiteatro para o bolso. A cada gesto, abre-se a arena. A pergunta central já não é apenas “é legal?” ou “funciona?”, mas “o que isso nos faz?”. A integridade moral de uma sociedade não se perde de uma vez; esgarça-se por concessões acumuladas ao prazer do castigo.

Resistir, portanto, é um exercício cívico: recusar o aplauso à dor, desconfiar da simplificação punitiva, exigir políticas que dispensem a encenação. Preservar a própria consciência é, hoje, uma forma de participar da vida pública. E, num país que aprendeu a sobreviver, talvez seja tempo de aprender a preservar — inclusive aquilo que nos humaniza.

 

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