PENSAMENTO PLURAL O presidente que não preside e a sombra que governa, por Palmarí de Lucena

A crônica do escritor Palmarí de Lucwena analisa a fragilidade da presidência de Hugo Motta na Câmara dos Deputados, marcada pela ausência de liderança, densidade institucional e direção política. O vazio deixado por essa condução permite a permanência da influência de Arthur Lira, agora nos bastidores, por meio de um método de poder baseado em controle e dependências. O texto alerta que a normalização desse arranjo esvazia o Legislativo, transforma a política em mecanismo e cobra seu custo da própria democracia. Confira íntegra...

Há presidentes que conduzem, outros que administram, e há aqueles que apenas ocupam a cadeira enquanto alguém, à sombra, movimenta as engrenagens. Hugo Motta pertence a essa última categoria. Sua presidência da Câmara não se afirma pelo gesto próprio, mas pela ausência dele. Governa-se o plenário como quem administra um condomínio em atraso: apagando incêndios, cedendo pressões, evitando decisões que deixem marcas — sobretudo as marcas da responsabilidade.

Não se trata apenas de inexperiência, nem de juventude. O problema é mais profundo: é a vacância de liderança. Falta densidade institucional. Falta gravidade. Falta a compreensão de que presidir a Câmara dos Deputados não é um ato protocolar, mas uma função simbólica e política que exige voz, direção e capacidade de arbitrar conflitos. A Casa não é espaço neutro, nem pode ser tratada como sala de espera de ambições futuras.

Hugo Motta fala pouco — e quando fala, não diz. Seus gestos são corretos, mas irrelevantes. Suas intervenções soam neutras até a omissão. A presidência, sob sua condução, parece reduzida a uma função cartorial: carimba, encaminha, evita. Governa-se pelo silêncio, não pela liderança. Em tempos normais, isso já seria insuficiente. Em tempos de crise, é perigoso.

Porque o vazio raramente permanece vazio.

Quando o presidente hesita, o poder não desaparece: muda de mãos. E, no caso brasileiro, costuma escorrer para os porões, onde operam as eminências cinzentas. Arthur Lira não saiu de cena. Apenas trocou o palco pelo bastidor. Sua influência permanece ativa, disciplinadora, quase pedagógica — no pior sentido do termo. Ensina-se ali que governabilidade não se constrói com princípios, mas com controle; que maioria não se convence, se administra; que o Parlamento não é espaço de deliberação, mas de contabilidade política.

Formalmente afastado do comando, Lira segue como força gravitacional do sistema. Não precisa aparecer: basta sugerir. Não precisa discursar: basta acenar. Seu poder não se mede por cargos, mas por dependências. E o poder que sobrevive ao fim do mandato é sempre o mais perigoso — porque já não responde a ritos, apenas a interesses.

Arthur Lira não deixou apenas um estilo: deixou um método. Um método que captura a pauta, captura o tempo, captura o conflito — até que a política vire mera gestão de conveniências. Sai o presidente, fica a engrenagem. Sai o cargo, permanece o sistema.

Hugo Motta, nesse arranjo, não lidera: administra a herança. Não confronta, não delimita, não inaugura um estilo próprio. Limita-se a preservar — inclusive as heranças mais tóxicas. Sua fragilidade é funcional: permite que o antigo comando continue operando sem ônus institucional. É o poder sem rosto, exercido à sombra de um presidente decorativo.

O resultado é uma Câmara sem bússola. Uma Casa guiada por reflexos automáticos, onde o mérito dos projetos importa menos que o pedigree dos interesses por trás deles. Uma Câmara que fala em nome da democracia, mas age como balcão; que se diz plural, mas funciona por feudos; que proclama autonomia, mas vive de dependências cruzadas.

O problema não é pessoal. É institucional. Um presidente fraco não é apenas um líder insuficiente; é um risco sistêmico. Ele abre espaço para que o passado continue governando o presente, impede a renovação de práticas e normaliza a ideia de que o poder já não precisa de rosto — basta ter acesso.

A democracia não morre apenas por golpes. Às vezes, ela se esvazia por inércia. Quando quem preside não conduz, e quem conduz não responde, o Legislativo deixa de ser poder — vira mecanismo.

E mecanismos, quando não são controlados, não representam ninguém. Apenas funcionam.

E quando a política aceita viver de sombras, o preço não é pago pelos líderes. É pago pelo país.

 

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