PENSAMENTO PLURAL O novo velho impulso de dominar, por Palmarí de Lucena

Em seu comentário, o escritor Palmarí de Lucena observa como “a política externa de Trump revela um paradoxo: enquanto critica intervenções e acusações moralistas do passado, ele próprio adota práticas que buscam impor ao mundo sua visão identitária”. Ao tratar diversidade e migração como ameaças existenciais, substitui diplomacia por intimidação e pressão, reforçando um etnonacionalismo projetado para além das fronteiras americanas. Esse movimento expõe inseguranças internas, alimenta tensões globais e oferece ao Brasil um alerta sobre os riscos de repetir impulsos autoritários disfarçados de proteção nacional. Confira íntegra...

De tempos em tempos, a política internacional revela que as disputas pelo sentido do mundo não desaparecem — apenas mudam de sotaque. Há quem anuncie o fim das intervenções, o cansaço das guerras, a promessa de um país voltado para dentro. Mas, quando se observa a prática, percebe-se que a lógica que move muitos governos continua sendo a mesma: a convicção de que podem moldar o planeta segundo sua própria visão.

A crítica ao intervencionismo sempre rende discursos inflamados. É fácil denunciar os erros das décadas passadas, os custos humanos das guerras, o fracasso de projetos que pretendiam “reconstruir nações”. O que não é tão fácil — e raramente se admite — é desistir do prazer de mandar. No centro das potências, mora sempre a tentação de decidir quem está certo, quem está errado e que tipo de mundo deve existir do lado de fora das próprias fronteiras.

O caso mais recente revela esse paradoxo com nitidez. De um lado, declara-se repúdio às missões messiânicas que marcaram o pós-11 de Setembro; de outro, adota-se uma doutrina que, sem falar em democracia ou direitos humanos, quer impor ao restante do planeta uma visão particular de identidade, cultura e destino. O discurso muda de roupa, mas continua dizendo a mesma coisa: quem tem força acredita ter também o direito de corrigir os outros.

A nova estratégia apresentada pelos Estados Unidos não se limita a apontar riscos ou divergências. Ela interpreta transformações demográficas, decisões políticas e movimentos migratórios como ameaças existenciais — não apenas à segurança, mas à própria “civilização”. Ao tratar a diversidade como perigo, a política externa passa a ser regida por um sentimento de cerco. E governos que se percebem cercados tendem a reagir com violência, não com diplomacia.

O problema não é apenas moral — é também estratégico. A ideia de que valores internos podem ser protegidos por meio do ataque a realidades externas é tão antiga quanto equivocada. Quanto mais uma potência tenta disciplinar o mundo, mais revela a própria insegurança. E, quanto mais se propõe a “corrigir” outros povos, mais expõe sua dificuldade de conviver com a complexidade.

E é aqui que o debate deixa de ser apenas americano — porque os sintomas não são exclusivos de lá. O Brasil conhece bem a força destrutiva das narrativas que tratam diversidade como ruptura e pluralidade como ameaça. Também aqui, em momentos diferentes da história, já se tentou classificar quem “pertence” e quem “desvia”, quem reforça a identidade nacional e quem supostamente a dilui. Toda vez que esse tipo de ideia volta à superfície, ela arrasta junto o autoritarismo, a polarização e a perseguição.

Quando governos transformam diferenças em pecado político, instituições deixam de arbitrar e passam a punir. Quando a política é capturada por cruzadas identitárias, adversários deixam de ser adversários e viram inimigos. E quando narrativas étnicas orientam decisões de Estado, a fronteira entre segurança e supremacia desaparece.

A lição que se extrai do cenário internacional é clara: democracias não sobrevivem quando confundem poder com pureza. Nenhuma nação se fortalece construindo muros contra o mundo — e muito menos contra uma parte de si mesma. A tentativa de uniformizar identidades leva sempre ao mesmo destino: sociedades mais tensas, menos livres e profundamente divididas.

Em um mundo marcado por migrações, misturas e interdependência, a força de um país não se mede pela capacidade de intimidar os demais, mas pela habilidade de dialogar sem temer a diferença. Quem acredita que civilizações se destroem porque acolhem o diverso ainda não compreendeu o que de fato destrói civilizações: o medo.

O novo imperialismo não usa mais a linguagem da salvação universal, mas sim a da defesa identitária. Pode parecer novidade, mas não é. É apenas o velho reflexo de quem não aceita que o mundo mudou — e, ao tentar moldá-lo à força, revela que talvez quem mais teme a mudança é aquele que tem mais poder.

Que o Brasil observe esse movimento com atenção. Porque impérios passam; democracias, quando bem cuidadas, ficam. E nada enfraquece mais uma democracia do que imitar as sombras que ela diz combater.

 

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