
Em seu comentário, o cineasta Durval Leal Filho trata da questão da lei municipal que estabelece como o território urbano pode ser usado, sem causar adensamento normlamente acompanhado dos problemas de infraestrutura. Durval aproveita a legislação, para também abordar a questão da Lei do Gabarito, que, recentemente, teve uma decisão do Tribunal de Justiça, alinhado com o que estabelece a Constituição Estadual, e lembra: “A orla, ao contrário do que certos textos insinuam, não é prêmio. É responsabilidade.” Confira íntegra...
A decisão do TJPB é sólida, imperativa e sustentável. A Constituição Estadual veda flexibilizações na faixa litorânea, patrimônio intocável. A sustentabilidade atrai investimento genuíno, não especulativo.
O artigo 62 da LUOS, pivô do problema, afrouxava gabaritos na orla de 500 metros da preamar, ignorando o Decreto 9.718/2021 e estudos da UFPB que provam ser uma porta aberta para urbanização predatória.
LUOS (Lei de uso e ocupação do solo). Trata-se de uma lei municipal que define como o território urbano pode ser utilizado, estabelecendo regras para construir, ocupar, parcelar e transformar o solo da cidade. É um dos principais instrumentos do planejamento urbano, ao lado do Plano Diretor.
Há um tipo de dramaturgia que, no Brasil, já deveria ter assento cativo na programação cultural: o drama corporativo em forma de nota técnica. Ele começa sempre do mesmo jeito, uma decisão judicial aplica o básico do ordenamento, recoloca a lei nos trilhos e, em seguida, surge a profecia do colapso. A cidade vai quebrar, o mercado vai desabar, as famílias ficarão sem teto, os cartórios entrarão em luto, e a economia regional, coitada, precisará de UTI. Tudo isso, claro, porque alguém ousou dizer: “isto aqui não está constitucional”.
No caso de João Pessoa, o enredo ganha contornos ainda mais reveladores porque o objeto real do conflito é aquilo que a cidade tem de melhor e mais sensível: a sua orla. Não é um detalhe urbanístico, nem uma “preferência estética” de quem gosta de ver o mar sem sombra de espigão. Orla é território ambiental, paisagem pública, ventilação, insolação, recuo, mobilidade, drenagem, risco costeiro, é um pacto civilizatório básico: o litoral não pode ser privatizado por altura, por gabarito, por sombra e por arrogância.
E foi exatamente aí que o Tribunal estadual, por maioria, declarou a inconstitucionalidade de uma lei municipal que abriu brecha para a quebra de gabarito e para uma flexibilização incompatível com normas constitucionais estaduais e federais, além de contrariar o dever de proteção ambiental que não é favor, é obrigação. Mas, como em todo bom drama, entra em cena o personagem que sempre aparece quando a Constituição atrapalha um “projeto”: o arauto do caos. Um dirigente de entidade de classe resolveu tratar a decisão judicial como se fosse um atentado econômico.
O curioso é que esse personagem age como se a norma anterior, aquela mais restritiva, mais cautelosa, mais compatível com a proteção da orla, fosse um vácuo normativo, uma espécie de terra sem lei. Não era. Era uma norma plenamente constitucional, alinhada ao que a Constituição estadual e a Constituição federal estabelecem, e em consonância com a noção elementar de função socioambiental do urbanismo costeiro.
A lógica corporativista, entretanto, tem sua própria gramática: quando a lei protege o interesse público, chamam de “entrave”, quando a lei abre caminho para a especulação, chamam de “desenvolvimento”. E aí a nota técnica vira instrumento de pressão, não de esclarecimento. Ela tenta desvirtuar o núcleo do problema, a orla, o gabarito, o impacto ambiental, a integridade do processo legislativo, e desloca o debate para onde convém: a ideia de que “tudo” estará ameaçado, de que “toda” a cidade pagará a conta, de que “todo” empreendimento ficará em risco.
É o velho truque do exagero: se o Tribunal corrigiu um ponto, então, por mágica, o resto do mapa urbano entra em combustão espontânea.
Só que o que foi discutido e vedado não foi “o mercado” em abstrato, nem “a construção civil” como categoria metafísica. O que foi contido foi o permissivo de construções na orla, a flexibilização que permitia a quebra de padrões, abrindo margem para uma verticalização que contraria o regime de proteção ambiental e urbanística que deveria ser reforçado, não afrouxado.
O Tribunal não decidiu contra programas habitacionais, não decidiu contra loteamentos regulares fora da zona sensível, não decidiu contra iniciativas que cumpram as regras e se submetam ao crivo técnico adequado. O alvo foi o ponto onde o risco e o dano potencial se tornam mais graves: a orla e a tentativa de reconfigurá-la por atalhos normativos.
É aí que a nota técnica, “escabrosa” no seu oportunismo, faz o que faz melhor: mistura assuntos para confundir. Passa a insinuar que a decisão atingiria empreendimentos fora da orla, como se a restrição costeira fosse um dominó que derrubaria qualquer coisa, inclusive projetos que não têm relação com gabarito na faixa litorânea.
É uma forma de fabricar pânico: encaixar “Minha Casa, Minha Vida” no mesmo parágrafo da quebra de gabarito da orla, como se fosse a mesma pauta, a mesma motivação e o mesmo impacto. Não é. Colocar tudo no mesmo saco é útil para o discurso, mas não é útil para a verdade jurídica nem para o cidadão que quer apenas que as regras sejam cumpridas onde elas importam mais.
O ponto mais inquietante, porém, não é a esperteza do texto, é a pretensão de transformar a proteção da orla em um capricho a ser “negociado”. Como se o direito coletivo à paisagem, à ventilação, ao equilíbrio ambiental e à fruição pública do litoral fosse um item de planilha a ser compensado por “benefícios” privados. Essa lógica é uma porta aberta para a “boa especulativa”: um modo de agir que tenta “de mansinho”, e aqui a expressão cabe com precisão, tomar o litoral como se fosse propriedade de poucos, rebaixando o interesse público a um rodapé de contrato.
E não se trata de demonizar a atividade econômica. Construir faz parte do ciclo urbano, o setor existe, emprega, movimenta, e ninguém sério defende um congelamento irracional da cidade. O que se exige é simples: construir com regra, com previsibilidade, com devido processo, com respeito ao zoneamento e às exigências ambientais. O que não se sustenta é a tentativa de “resolver” a cidade por exceção, por atalhos legislativos, por dispositivos que driblam parâmetros e, depois, pedem indulgência institucional quando o Judiciário faz o que lhe cabe: declarar a incompatibilidade constitucional.
Nesse cenário, a nota técnica funciona como recurso corporativista em detrimento do que o Tribunal proveu: ela não busca compreender o fundamento da decisão, busca pressionar o seu entorno. Em vez de reconhecer o vício e discutir soluções normativas coerentes, ela prefere insinuar que o Tribunal estaria desorganizando a economia, quando, na prática, a decisão tende a reduzir insegurança a longo prazo.
Porque insegurança não nasce da Constituição, insegurança nasce de leis malfeitas, mal tramitadas e materialmente incompatíveis, que deixam uma trilha de licenças, disputas e judicializações, e, depois, pedem ao país que finja normalidade.
O cidadão, nesse teatro, costuma ser tratado como figurante. Mas é justamente ele quem paga a conta do improviso: paga quando o litoral se degrada, paga quando o trânsito colapsa, paga quando as áreas públicas perdem qualidade, paga quando a paisagem se privatiza por sombra, paga quando o vento some e o calor aumenta, paga quando a infraestrutura urbana não acompanha o adensamento e a drenagem falha. E paga duas vezes: primeiro na cidade concreta, depois no contencioso interminável que nasce de normas fracas e decisões corretivas inevitáveis.
Há ainda um aspecto que a nota técnica evita encarar: a Constituição estadual e a Constituição federal não são “opiniões”. Elas estabelecem parâmetros e impõem deveres. O meio ambiente equilibrado não é retórica é direito fundamental, com efeitos sobre política urbana, licenciamento, zoneamento e planejamento costeiro. A função social da propriedade não é frase bonita, é limite jurídico. E o devido processo legislativo não é capricho burocrático, é condição de validade. Quando se tenta subverter esses pilares, o que se está pedindo, no fundo, é licença para escolher quais partes do ordenamento valem e quais atrapalham.
João Pessoa, como cidade costeira, não pode tratar sua orla como moeda de troca. Preservá-la dentro dos padrões estabelecidos não é “atraso”, é racionalidade urbana e justiça intergeracional. O litoral é um bem que precisa servir à população, e não a uma classe corporativa que tenta, por narrativa, fraudar o que é direito do cidadão: uma orla preservada, respirável, pública, coerente com as regras e com a Constituição.
O Tribunal, ao reafirmar os limites constitucionais, não “cria caos”, apenas lembra, com a sobriedade que irrita os apressados, que a cidade não é um canteiro sem Constituição. A orla, ao contrário do que certos textos insinuam, não é prêmio. É responsabilidade. E responsabilidade, em urbanismo, é aquilo que o corporativismo mais detesta quando aparece em forma de decisão.
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