PENSAMENTO PLURAL Emendas parlamentares, controle constitucional e a retórica da retaliação, por Palmarí de Lucena

O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal no controle da execução das emendas parlamentares, destacando que o foco do Tribunal é procedimental, não político. Sustenta que a opacidade, a baixa capacidade administrativa e a fragilidade dos controles favorecem desperdícios e irregularidades. Critica a retórica de retaliação contra o STF, argumentando que ameaças ao órgão de controle invertem a lógica republicana e enfraquecem o Estado de Direito. Confira íntegra...

O debate em torno das emendas parlamentares ganhou contornos institucionais mais amplos quando o Supremo Tribunal Federal passou a examinar sua forma de execução. Para alguns, trata-se de interferência indevida do Judiciário em matéria orçamentária. Para outros, de um exercício legítimo de controle. Uma análise menos passional indica que a atuação do Tribunal não decorre de voluntarismo político, mas do cumprimento estrito de sua função constitucional.

As emendas parlamentares são instrumentos legítimos do processo orçamentário. Permitem ao Legislativo influenciar a alocação de recursos e atender demandas regionais. O problema surge quando sua execução se afasta de princípios básicos da administração pública, como transparência, impessoalidade e rastreabilidade. Nesses casos, o debate deixa de ser político e passa a ser jurídico-institucional.

A Constituição não confere ao Orçamento um estatuto de exceção. Pelo contrário: o gasto público está submetido aos mesmos princípios que regem toda a administração. Quando mecanismos orçamentários operam em ambiente de opacidade, com dificuldades para identificar autores, critérios de distribuição ou responsáveis pela execução, cria-se uma zona de fragilidade institucional. É nesse ponto que se insere a atuação do Supremo Tribunal Federal.

O Tribunal não delibera sobre prioridades orçamentárias nem substitui o Congresso na escolha de políticas públicas. Seu foco recai sobre procedimentos, não sobre o mérito das decisões. Exigir publicidade, critérios objetivos e possibilidade de fiscalização não equivale a governar; equivale a assegurar que o exercício do poder observe os limites constitucionais.

A separação de Poderes, frequentemente invocada nesse debate, não implica isolamento absoluto. O modelo constitucional brasileiro prevê freios e contrapesos justamente para evitar que qualquer Poder atue sem controle. O Legislativo possui ampla liberdade para definir o Orçamento, mas essa liberdade não é incompatível com a exigência de prestação de contas e de observância às normas constitucionais.

Nos últimos desdobramentos desse embate, porém, surgiu um elemento adicional de preocupação institucional: a retórica de retaliação contra o STF. Propostas de limitar competências, discursos de intimidação ou ameaças veladas de reação política ao controle judicial não contribuem para o aperfeiçoamento do sistema orçamentário. Ao contrário, deslocam o foco do problema central — a fragilidade da execução das emendas — para um conflito entre Poderes que empobrece o debate público.

Questionar decisões judiciais é parte do jogo democrático. Ameaçar o órgão de controle por exercer sua função constitucional, não. Quando a fiscalização do gasto público passa a ser tratada como afronta, e não como dever institucional, cria-se um precedente perigoso: o de que apontar indícios de irregularidade ou má gestão seria um ato hostil, passível de punição política. Esse raciocínio inverte a lógica republicana.

Ignorar esse aspecto significa aceitar que a incompetência administrativa e a fragilidade dos controles se tornem características permanentes do gasto público, blindadas por pressões políticas. A experiência recente mostra que a ausência de critérios técnicos e de acompanhamento efetivo não apenas favorece irregularidades, mas também produz desperdícios legais, porém socialmente custosos. Obras inacabadas, convênios ineficazes e recursos mal aplicados corroem o erário mesmo quando não há crime tipificado.

Nesse contexto, a atuação do STF funciona como um mecanismo de correção institucional. Ao impor balizas mínimas de transparência e controle, o Tribunal não deslegitima as emendas parlamentares; ao contrário, busca preservar sua credibilidade e compatibilizá-las com o Estado de Direito. O objetivo não é reduzir a autonomia do Legislativo, mas impedir que instrumentos legítimos sejam esvaziados por práticas administrativas frágeis — ou protegidos por reações corporativas.

A controvérsia revela um ponto central: o problema das emendas não reside apenas em eventuais desvios, mas na combinação entre volume elevado de recursos, baixa capacidade administrativa, controles insuficientes e resistência ao escrutínio institucional. Sem enfrentar essa equação, o debate continuará oscilando entre acusações políticas, ameaças de retaliação e soluções superficiais.

Em uma democracia madura, o controle constitucional do gasto público não é sinal de crise institucional, mas de funcionamento regular das instituições. Onde há dinheiro público, deve haver método, transparência e responsabilidade. E onde o controle provoca reações defensivas, o problema não está no controle, mas no que ele revela.

 

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