
O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa a recente mudança legislativa nos critérios de dosimetria penal como um caso exemplar de autoproteção institucional. Sob o pretexto de corrigir excessos, o Parlamento transforma interesses defensivos em norma geral, convertendo advocacia administrativa em lei. A dosimetria, já elástica no Judiciário, passa a ser blindagem legislativa. “O resultado é a corrosão da generalidade da lei e o enfraquecimento da confiança na Justiça penal”, pontua. Confira íntegra...
A recente aprovação, pela Câmara, do projeto que altera critérios de dosimetria penal é um exemplo didático do que Alexis de Tocqueville chamaria de degeneração silenciosa das instituições — e do que, em linguagem mais direta, pode ser definido como advocacia administrativa travestida de lei. Não se trata de aprimorar a justiça penal, mas de ajustá-la ao interesse imediato de quem legisla sob a sombra do próprio risco.
O discurso é conhecido e cuidadosamente embalado: “corrigir excessos”, “restabelecer proporcionalidade”, “garantir segurança jurídica”. Palavras grandes, intenções aparentemente nobres. Mas basta olhar o contexto para perceber o movimento real. Quando parlamentares passam a legislar sobre critérios penais em um momento em que muitos deles — ou seus aliados — enfrentam ou temem enfrentar o alcance da Justiça, a fronteira entre reforma e autoproteção deixa de ser sutil.
A dosimetria, que já vinha sendo manipulada no plano judicial como instrumento narrativo, agora corre o risco de ser distorcida também no plano legislativo. O que antes era discricionariedade mal explicada transforma-se em blindagem legal cuidadosamente desenhada. A lei deixa de ser regra geral para se tornar escudo específico.
É a advocacia administrativa em seu estado mais puro: não aquela praticada nos bastidores de repartições, mas elevada à dignidade formal do processo legislativo. O Parlamento assume o papel de defensor em causa própria e converte argumentos de conveniência jurídica em norma abstrata. O interesse privado veste a toga da legalidade.
O problema não é apenas ético — é institucional. Quando leis penais passam a responder a conjunturas pessoais, o princípio da generalidade da lei se rompe. A norma deixa de valer para todos e passa a valer para alguém. A Justiça, que deveria ser previsível, torna-se estratégica. A pena deixa de ser medida e passa a ser variável política.
Nesse cenário, a farsa da dosimetria ganha uma segunda camada. Primeiro, o cálculo judicial elástico, moldado ao personagem e ao clima do momento. Depois, o cálculo legislativo oportunista, moldado ao medo e à autopreservação. A balança não apenas perde o equilíbrio — passa a ser carregada no bolso.
Defensores do projeto dirão que o Parlamento exerce sua prerrogativa. É verdade. Mas prerrogativas não suspendem princípios. Legislar em causa própria não é exercício de soberania; é confissão de fragilidade institucional. Democracias maduras se protegem do abuso criando freios. Democracias cansadas fazem o oposto: flexibilizam regras quando sentem o cerco se aproximar.
Ao transformar interesses defensivos em lei, a Câmara não corrige distorções da Justiça — apenas muda o endereço do arbítrio. Sai das sentenças e entra no texto legal. O ritual permanece democrático, mas a motivação já não é pública.
No fim, a dosimetria continua sendo farsa. Só que agora com carimbo legislativo. E quando a autoproteção se converte em norma, não é apenas a Justiça Penal que perde credibilidade. É a própria ideia de lei como expressão do interesse comum que começa a desmoronar, silenciosamente, artigo por artigo.
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