PENSAMENTO PLURAL O barulho do vazio, por Palmarí de Lucena

O comentário do escritor Palmarí de Lucena analisa a reação da extrema direita à campanha das Havaianas com Fernanda Torres como sintoma do empobrecimento do debate público. Um anúncio comercial trivial é artificialmente convertido em ameaça política, revelando torpeza intelectual e incapacidade de lidar com temas reais. “Ao criar inimigos imaginários, esses grupos acusam censura e violação de direitos onde não existem, transformando o banal em conflito e substituindo argumentos por ruído e indignação performática”, reflete. Confira íntegra...

A controvérsia em torno da campanha das Havaianas estrelada por Fernanda Torres diz menos sobre publicidade e muito mais sobre o estado atual do debate público. Um anúncio leve, concebido para vender um produto popular com humor e familiaridade, foi artificialmente elevado à condição de manifesto político por setores da extrema direita que parecem incapazes de distinguir mercado de militância, consumo de ideologia, estética de doutrina.

Nada há de subversivo em um comercial de sandálias. Não há mensagem cifrada, programa de poder ou convocação militante. Ainda assim, o anúncio foi tratado como afronta política, como se um objeto trivial pudesse ocultar intenções conspiratórias. Quando o banal vira ameaça, o problema não está no objeto, mas no olhar que o distorce.

Essa reação expõe uma torpeza intelectual recorrente. Incapazes de sustentar debate consistente sobre temas reais — economia, educação, saúde, políticas públicas — os extremistas deslocam o conflito para o terreno simbólico mais raso possível. A atriz vira inimiga, a propaganda vira trincheira, o consumo vira guerra cultural. Substituem-se argumentos por escândalos fabricados e reflexão por indignação performática.

O expediente é conhecido. A mesma extrema direita que acusa instituições democráticas de violar direitos civis, direitos humanos e de promover censura cria agora um inimigo imaginário para, em seguida, oferecer-se como sua domadora. Constrói-se o monstro para depois posar de salvador. É a chicana demagógica em estado puro: inflar ameaças inexistentes, provocar reação emocional e reivindicar autoridade moral para “defender” a sociedade.

Nesse processo, direitos fundamentais são esvaziados de sentido. Deixam de ser princípios universais para virar slogans ocasionais, acionados conforme a conveniência do conflito. A censura é denunciada onde não existe; o autoritarismo é atribuído a anúncios publicitários; a liberdade de expressão é reduzida à licença para hostilizar o que desagrada.

Há, nesse comportamento, um vazio difícil de disfarçar. Politiza-se o irrelevante para evitar o essencial. O barulho funciona como cortina de fumaça: grita-se muito para não dizer quase nada. A política, reduzida a reação nervosa diante do cotidiano, perde densidade, conteúdo e propósito. Passa a existir apenas como ruído.

Confundir publicidade com discurso político é, além de tudo, um erro conceitual elementar. Campanhas comerciais operam no registro da linguagem do mercado: buscam identificação, afeto, humor, reconhecimento. Não são catecismos nem tribunas. Exigir delas alinhamento ideológico é sinal de intolerância cultural e, sobretudo, de insegurança diante de uma sociedade plural, onde nem tudo pede licença à política.

O episódio das Havaianas revela, assim, uma fragilidade mais profunda. Quem enxerga censura em anúncios e violação de direitos em campanhas publicitárias demonstra menos zelo democrático do que incapacidade de conviver com o trivial. A extrema direita transforma o banal em ameaça porque já não consegue disputar o essencial — e precisa do conflito permanente para justificar a própria existência.

No fim, a sandália continua sendo sandália. O anúncio continua sendo anúncio. O que permanece é o retrato de um extremismo raso, barulhento e oco — que cria monstros imaginários para depois fingir combatê-los e confunde consumo com política, acreditando que fazer guerra cultural contra o trivial é sinal de força, quando é apenas prova de vazio.

 

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