
O texto do escritor Palmarí de Lucena analisa o paradoxo brasileiro entre um sistema eleitoral seguro e escolhas políticas recorrentes de baixa qualidade. A partir das leituras de Stefan Zweig e Sérgio Buarque de Holanda, argumenta que a vitalidade social e a ampla participação não se convertem automaticamente em boa representação. “A cordialidade, quando invade o espaço público, favorece personalismos, slogans e interesses corporativos, corroendo o futuro por meio de decisões medíocres e desgaste institucional contínuo”, postula. Confira íntegra...
O Brasil alcançou um feito institucional que merece reconhecimento sem reservas: construiu um sistema eleitoral seguro, amplamente inclusivo e tecnicamente confiável. O direito ao voto é garantido, o processo é transparente, os resultados são aceitos. Do ponto de vista formal, a participação popular está assegurada. O paradoxo começa quando se observa o desfecho reiterado desse processo: representantes despreparados, discursos vazios, agendas capturadas por interesses pessoais ou corporativos. A democracia funciona; a escolha, nem sempre.
Esse descompasso não decorre de uma falha única, nem pode ser atribuído a um ator isolado. Ele emerge da combinação entre virtudes sociais e fragilidades institucionais. Um olhar mais esperançoso, como o de Stefan Zweig, enxergou no Brasil uma nação dotada de energia humana rara, vocação plural e capacidade de convivência. Sua aposta não estava na perfeição das instituições, mas na vitalidade do tecido social, que imaginava capaz de se traduzir, com o tempo, em progresso político.
Essa energia existe e é visível. Manifesta-se na disposição para participar, na criatividade cotidiana, na capacidade de adaptação diante da escassez. O Brasil comparece às urnas, mobiliza-se, envolve-se. O problema é que participação, por si só, não garante qualidade da representação.
É aqui que a leitura mais estrutural de Sérgio Buarque de Holanda se impõe com atualidade desconfortável. Ao formular a ideia do “homem cordial”, não celebrava uma virtude cívica, mas apontava um limite histórico: a tendência de confundir relações pessoais com critérios públicos, afetos com normas, proximidade com legitimidade. No ambiente eleitoral, essa lógica favorece figuras que mobilizam emoções, identidades ou ressentimentos, em detrimento de projetos consistentes e preparo técnico.
O resultado é um sistema coerente na forma e frágil no conteúdo. As campanhas premiam visibilidade e performance; a complexidade vira obstáculo; o conhecimento técnico torna-se acessório. Interesses corporativos bem-organizados ocupam o espaço deixado por partidos frágeis e por um debate público encurtado. O eleitor não escolhe no vazio: escolhe entre alternativas empobrecidas, moldadas por incentivos que privilegiam o barulho em vez da responsabilidade.
Esse padrão não produz colapsos imediatos. Seus efeitos são cumulativos e silenciosos. A incompetência política corrói o futuro por meio de decisões mal calibradas, políticas descontínuas, prioridades invertidas e omissões recorrentes. A desigualdade se perpetua, a infraestrutura se degrada, a confiança institucional se desgasta. Não há espetáculo — há erosão.
Os dois olhares, longe de se anularem, ajudam a compreender o impasse. A aposta de Zweig na vitalidade brasileira não estava errada; ela apenas foi superestimada como motor automático de boa política. A advertência de Sérgio Buarque tampouco implica ceticismo absoluto, mas a constatação de que energia social sem mediação institucional tende a se dissipar.
Garantir o voto foi condição necessária, mas não suficiente. Democracia não se esgota na lisura do processo eleitoral; exige qualidade das alternativas, partidos responsáveis, debate público informado e instituições capazes de premiar competência em vez de histrionismo. Sem isso, a participação popular corre o risco de legitimar escolhas reiteradamente pobres.
O Brasil segue suspenso entre o país do futuro imaginado e o homem cordial real. O desafio não é abandonar a esperança nem negar a cultura, mas transformá-las em civilidade pública, regra comum e responsabilidade compartilhada. A democracia brasileira mostrou-se forte o bastante para assegurar a participação. Resta torná-la exigente o suficiente para qualificar a escolha — antes que o futuro, sempre prometido, continue sendo apenas adiado.
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