PENSAMENTO PLURAL Quando o silêncio aprende a falar mais alto, por Palmarí de Lucena

O texto do escritor Palmarí de Lucena reflete sobre Gaza como um espaço onde a violência se torna rotina e o silêncio, cumplicidade. Denuncia a linguagem técnica que transforma vidas em números e normaliza o sofrimento civil, evocando Yevgeny Yevtushenko e Babi Yar para alertar que a barbárie se completa na indiferença. Condenar o terror não basta quando se aceita o castigo coletivo. A ética começa ao recusar hierarquizar vítimas e termina quando o silêncio se apresenta como prudência. Confira íntegra...

Há tragédias que não se anunciam pelo estrondo, mas pela repetição. Gaza tornou-se esse lugar onde o sofrimento se acumula até parecer paisagem. Não é apenas a violência que cai do céu ou avança pelo chão; é o hábito que se instala ao redor dela. Quando a dor vira rotina, a consciência aprende a desviar o olhar — e chama isso de prudência.

A linguagem ajuda. Mortes viram números; bairros, manchas em mapas; pessoas, “alvos”. O vocabulário técnico protege quem fala do peso do que acontece. Explica-se demais, sente-se de menos. Entre comunicados e gráficos, a vida comum — o pão, a escola, a noite que deveria ser de sono — some sem registro. A história, então, passa a ser escrita em notas de rodapé.

O poeta Yevgeny Yevtushenko conhecia esse mecanismo. Em Babi Yar, não se limitou a denunciar o massacre; acusou o vazio em volta dele. Para Yevtushenko, a barbárie não termina no ato violento. Ela se completa quando o silêncio oferece abrigo moral ao crime, quando a memória é soterrada e a empatia, censurada. O perigo não é apenas o algoz, mas o conforto que se organiza ao redor da explicação conveniente.

Gaza ecoa essa lição com brutal clareza. O horror não se restringe ao impacto imediato das armas; prolonga-se na naturalização do castigo coletivo, na ideia perigosa de que algumas vidas podem ser suspensas em nome de um argumento maior. Toda vez que se escolhe um “lado certo” sem olhar para os civis no meio do caminho, algo essencial se perde: a noção de limite moral.

A condenação do terror é necessária; a indiferença ao sofrimento alheio, não. Segurança não se constrói sobre a erosão da humanidade. Quando a exceção vira regra — cercos prolongados, deslocamentos forçados, rotinas interrompidas —, a violência deixa de ser evento e passa a ser método. E métodos, a história ensina, costumam sobreviver às justificativas que os criaram.

Há também uma responsabilidade que não dispara armas. O mundo que assiste, comenta e relativiza participa do enredo. Neutralidade, nesse contexto, não é ausência de posição; é uma escolha confortável. O silêncio pesa — ainda que tarde — na balança da memória. Ele transforma o intolerável em administrável e o sofrimento em assunto de agenda.

As crianças e as mulheres de Gaza revelam o limite desse arranjo. Elas não cabem em notas técnicas nem em cálculos de proporcionalidade. Existem antes da justificativa e depois do silêncio. Pagam um preço que não escolheram, enquanto o debate se refugia em fórmulas que absolvem. Quando a linguagem aceita chamar o insuportável de “necessário”, o crime ganha vocabulário e a consciência pede licença.

Yevtushenko escreveria contra esse conforto. Não contra exércitos, mas contra a frase pronta que absolve; não contra a política, mas contra o cálculo que substitui nomes. Diria que não há causa grande o bastante para encolher o humano, nem lado certo onde a vida comum é suspensa. A ética começa quando se recusa a hierarquizar vítimas e termina quando se aceita explicar em vez de interromper.

Não se trata de resolver conflitos, mas de recusar a anestesia. Antes de qualquer cálculo, existe a vida comum — frágil, insubstituível — e nenhuma causa se engrandece ao apagá-la. Quando o silêncio ainda se chama prudência, é porque faltou coragem para dizer não. E, então, a história avança sobre os escombros não como juíza, mas como espelho: devolvendo intacto aquilo que se tentou enterrar — o nome das vítimas, o peso da omissão e a vergonha de quem passou em silêncio.

 

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