Aviso aos raivosos: “Sem liberdade de expressão, a democracia é uma farsa”
O escritor britânico Ian McEwan, um dos mais lidos e celebrados da atualidade, publicou recentemente um texto sobre a liberdade de expressão, em meio ao clamor mundial em torno do Caso Charlie Hebdo. Diz: “A livre expressão é dura, é barulhenta e, às vezes, fere, mas, quando tantas visões de mundo precisam conviver lado a lado, a única alternativa à livre expressão é a intimidação, a violência e o conflito acirrado entre comunidades.”
O texto, publicado no UOL, é um libelo à liberdade em seu sentido mais íntimo, mas especialmente lembra que a liberdade de imprensa é a que leva as demais liberdades, na medida em que mantém a sociedade informada, e municiada dos instrumentos para fazer um melhor julgamento. Texto obrigatório para todos, mas especialmente para aqueles raivosos que agridem jornalistas, inclusive aqui na Paraíba, sempre que o governante de plantão é alto de críticas. Segue na íntegra:
“Cidades globais como Paris, Londres ou Nova York, e seus entornos, possuem 10 milhões de pessoas ou mais em uma área menor que uma fazenda de criação de gado de tamanho médio nos EUA. Se os cidadãos fossem todos de uma só religião, uma só raça e uma só visão de mundo, a questão da liberdade de expressão nunca teria surgido.
Uma área reduzida de uma cidade pode conter todas as raças da Terra e todas as visões religiosas, políticas e existenciais imagináveis.
Diariamente, a partir de seus templos, as religiões blasfemam umas às outras. Jesus é filho de Deus? Não se você é muçulmano. Maomé foi o último mensageiro de Deus na Terra? Não se você é cristão. O universo pode ser explicado ou explorado a partir de uma cosmologia sem deuses, baseada na física? Não se você é muçulmano ou cristão.
Quem vai garantir a paz? Não será a religião. A história europeia nos recorda que quando o cristianismo vivia sua pompa totalitária, anterior ao iluminismo, a intolerância das pequenas diferenças levou à barbárie e a massacres em escala chocante, como a Guerra dos Trinta Anos.
O islã –do Paquistão à Arábia Saudita e outros países do Golfo Pérsico, da Indonésia e da Turquia ao Egito– vive sua versão própria de um momento totalitário. Diariamente lemos sobre casos de tortura, prisão e execução de muçulmanos que desejam deixar o islã ou discuti-lo.
No Paquistão, políticos usam as leis de blasfêmia como armas letais. Uma professora está presa no Egito há três anos por ter falado a seus alunos sobre outras religiões. Em todo o Oriente Médio, o cristianismo e o zoroastrismo estão sendo expulsos dos lugares onde nasceram. Na Turquia, a liberdade de imprensa está sob ataque cerrado por parte de conservadores religiosos.
Regimes árabes autoritários utilizam a sharia, a lei islâmica, como meio de reprimir a oposição política. Os grupos radicais Boko Haram e Estado Islâmico representam uma intensificação do que é praticado em certos Estados.
Na Arábia Saudita, que abriga os santuários mais reverenciados do islã, o abandono da fé é punido com a pena de morte. A mais recente repressão à liberdade de expressão cometida naquele país –mil chicotadas e dez anos de prisão– mostra que o governo saudita denigre o islã como religião da paz. A sentença provocou reações de repulsa em todo o mundo, algumas delas manifestadas por muçulmanos.
Nas cidades do Ocidente, com sua riqueza de raças e religiões, o único fiador da liberdade de religião e da tolerância é o Estado laico. Ele respeita todas as religiões e acredita em todas –ou em nenhuma.
A liberdade que permite aos jornalistas do semanário “Charlie Hebdo” criarem sua sátira é exatamente a mesma liberdade que permite aos muçulmanos na França seguirem sua religião e expressarem seus pontos de vista abertamente.
Os devotos não podem ter as duas coisas. A livre expressão é dura, é barulhenta e, às vezes, fere, mas, quando tantas visões de mundo precisam conviver lado a lado, a única alternativa à livre expressão é a intimidação, a violência e o conflito acirrado entre comunidades.
É impossível exagerar a importância da liberdade de expressão. Ela não é um simples luxo de jornalistas e escritores. Também não é um valor absoluto. Quando é reduzida (por exemplo, para limitar o alcance on-line de pedófilos), precisa ser por meio de leis, em conformidade com as instituições democráticas. Mas sem liberdade de expressão, a democracia é uma farsa.
Todas as liberdades que gozamos ou desejamos gozar tiveram que ser pensadas e discutidas livremente e instituídas por escrito.
A liberdade de expressão –de dar e receber informações, de formular perguntas incômodas, de realizar pesquisas acadêmicas, de praticar a crítica, a fantasia, a sátira–, o intercâmbio de ideias em toda a gama de nossas capacidades intelectuais, é a liberdade que dá origem às outras.
A livre expressão não é inimiga da religião, é sua protetora. Graças à sua existência há mesquitas às dezenas em Paris, Londres e Nova York. Em Riad, na Arábia Saudita, onde ela está ausente, não são permitidas igrejas. Hoje, quem importar uma Bíblia pode ser punido com a morte.”
Mais em http://goo.gl/R6fuum.