DIA DE CONTO As portas da alma do mundo
Era um tempo em que atormentava com a impossibilidade de traduzir em palavras o que me vinha ao pensamento. Por mais que tentasse, as palavras não conseguiam alcançar o significado daquilo que os territórios sagrados me enviavam.
Pensava quanto podia ser inglório o trabalho do escritor, na esperança de apalavrar elementos oriundos de regiões ao mesmo tempo tão próximas e tão remotas de si mesmo. Essas reflexões faziam daquele tempo um tempo de melancolia permanente.
Então, eu catava conchas na maré baixa. E também refletia sobre elas. Sobre como as duas partes de uma mesma concha são irmãs, e também distintas. Uma diferente da outra, ainda que em pequenos detalhes. A mesma natureza que estabelecia a simetria dos seres vivos, também impunha uma assimetria entre os simétricos.
Seria uma mensagem? Certamente. Mas, precisamente que mensagem? Será o recado de que é impossível reproduzir, copiar um indivíduo com todas as suas características? Será que a justificativa da espécie está na identidade única de cada um de seus indivíduos?
Ou será que tudo ainda está num processo evolutivo em busca do que seria uma simetria perfeita? Ou ainda melhor, que a beleza e o sentido estão nas diferenças e a evolução só irá aperfeiçoar as diferenças nas semelhanças?
Usava dessas reflexões, quando algo que poderia ser uma mudança tênue na direção do vento, um odor sutil vindo de alguma parte, ou mesmo uma alteração quase imperceptível da temperatura, não tenho certeza, me fez levantar os olhos.
E aconteceu. Aconteceu de por os olhos numa figura de mulher. Não era gorda, mais para magra. Também não era alta, no máximo, na média. Não era bonita. Era muito feia. Não, não era exatamente feia, outra característica foi o que chamou atenção.
No breve instante em que passamos um pelo outro, pude ver sua tristeza. Sim, era uma expressão de tristeza. Mas, não uma tristeza qualquer. Uma tristeza profunda, dessas marcam as feições, com um vinco quase trágico. Uma tristeza vinda dos abissais daquela mulher.
Era uma tristeza marcante, que manda mensagens de dor, e que contamina quem vê. E eu me senti atingido. E foi impossível desviar os olhos daqueles olhos negros e tão tristes. E fui contaminado, porque talvez entendesse a linguagem da melancolia. Ou exatamente por não conhecer e ser pego de surpresa.
Nós cruzamos os olhos num breve lapso de tempo, nem um segundo talvez, apenas senti o impacto, como ela tivesse me passado parte de sua dor. Uma migração de melancolia. Passamos um pelo outro e seguimos adiantes, eu levando parte da mensagem de seus olhos.
E então, mais alguns passos à frente, algo me puxou institivamente para trás. Certamente os átomos de sua tristeza tinham interagido com os meus. Foi minha impressão e meu susto. Algo absolutamente inusitado. Jamais passara por uma experiência assim.
Em certo momento, simplesmente não consegui mais prosseguir, a ordem era retornar e reencontrar aquele rosto tomado da maior melancolia já vista. E foi assim que retornei e apressei o passo. Ela já seguia distante, com o mesmo passo compassado das pessoas tristes e seu rumo.
Então, passando por cima de todas as conveniências, eu sai em sua perseguição, pois que era uma perseguição. O que mais poderia ser? Apressei o passo para tentar alcança-la. Em algum momento, por alguma razão, talvez intuição, ela percebeu que estava sendo seguida, perseguida, mas não mudou a cadência de seu andar.
Hoje, meditando sobre o episódio, entendo que talvez naquela rápida troca de olhares, ela tenha percebido que eu não representava perigo. Seu instinto animal sabia que eu não queria seu mal. Então, fui me aproximando dela, fazendo a areia ranger rápido sob meus pés. Eu não enxergava mais nada, nem as conchas, nem o mar. Só o seu corpo ondulante adiante.
Creio que ela até esperou que abordasse. Por um instante, tive a convicção que ela desacelerou um tantinho seus passos, num momento em que me aproximei, toquei, ou talvez nem tenha tocado, mas eis que ela se virou e me encarou subitamente. Era a face da tristeza que estava diante de mim.
Fiquei embaraçado, não esperava que me encarasse tão decidida, como se indagasse o que eu queria, quase como um desafio. E eu gaguejei uma desculpa qualquer, mas eu queria dizer que a tinha seguido porque queria compreender o que significa tamanha tristeza em seus olhos.
Ou, quem sabe, eu apenas tenha imaginado. Mas, se ouviu ou apenas suspeitou o que eu pensara, ela disse: “As portas da alma do mundo não abriram para mim.” E seus olhos ficaram ainda mais melancólicos. Entre atônito e surpreso ainda indaguei: “As portas da alma do mundo?” E ela certamente me achou muito bobo. Sim.
“As portas da alma do mundo só se abrem para os verdadeiros poetas. Sempre foi meu sonho ser poeta, hoje vejo que não sou, nunca fui e por isso a vida perdeu o sentido para mim. A tristeza me vem por companhia, compadecida de minha desdita. Se não faço versos, pelo menos fico triste, e essa é a minha verdade”.
Ela disse e acrescentou solfejando como se recitasse: “Os meus pensamentos são contentes.” E deve ter percebido o pasmo em meus olhos, quando completou: “Mas a minha tristeza é sossego, porque é natural e justa… Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas.”
Eu não podia compreender, e apenas consegui dizer: “Então ser poeta é a sua ambição?” E ela respondeu, com uma ponta muito sutil de sarcasmo: “Ser poeta não é uma ambição minha, seria a minha maneira de estar sozinha.” Disse ainda: “Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.” Suas frases me soaram muito familiar. Certamente uma pessoa sem dons poéticos jamais teria tais palavras para dar.
“Mas, tudo que você diz tem uma maravilhosa carga de poesia, que poucos poetas têm. Você é uma poeta, sim”, arrisquei ainda. E ela: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” Seus olhos agora estavam tomados de uma espécie de possessão. Como se não fosse a mulher tão triste que eu havia abordado momentos antes.
E acrescentou já se afastando: “Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.” E eu ainda tentei segurar seu braço: “Tudo que você me diz só fala de poesia, só diz de poesia, que poeta é você afinal?” Ela: “Não sei quantas almas tenho… o máximo que eu consigo é tomar emprestado algumas palavras da alma do mundo, que se abriu para outros, mas não se abriu para mim…”
Enquanto processava suas palavras e tentava entender porque achara tão familiar suas frases, nem me dei conta de que passara um tempo, quase uma eternidade. E quando me virei para perguntar seu nome, ela não estava mais ali. Nem longe dali. Nem onde meus olhos pudessem ver. Ela simplesmente desaparecera.