Folha de São Paulo publica artigo de Myriam Gadelha denunciando agressão de Fábio Tyrone
A agressão patrocinada pelo prefeito Fábio Tyrone contra a advogada Myriam Gadelha ganhou as páginas do jornal Folha de São Paulo. Um artigo assinado pela advogada foi publicado, no último dia 11, sob o título “O machismo, palavra feia”. Myriam relata a agressão, repudia argumentação de Tyrone de motivação política da denúncia e cobra providências da Justiça.
No artigo, Myriam relata que “infelizmente, o meu agressor, para fugir do real escopo, preferiu acostar este tom aos fatos (alegação política). Não há que se falar em urnas, nem em eleição. Se há algo de político nisso tudo, é a violência contra a mulher, diuturna, o machismo estrutural, a cultura do patriarcado que precisa, urgentemente, ser combatida”.
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CONFIRA A ÍNTEGRA DO ARTIGO…
O machismo, palavra feia
Remete a algo de bestial, antes de arcaico, antes de primitivo, antes de cultural. É justamente isso. O machismo é a manifestação da força do homem sobre a mulher, das tentativas, majoritariamente, exitosas, de torná-la sua, tanto quanto um carro ou uma casa. Primeiro, por meio da força física, que se traduziu, ao longo de milênios, na força psicológica que anima a cultura patriarcal.
Mesmo em 2018, é deprimente ser mulher: continuamos sujeitas, física e psicologicamente, ao poder e aos influxos masculinos, de forma tão natural que, às vezes, fica quase imperceptível. Despertar e perceber é desesperador, mas, assim que acontece, fica muito mais claro compreender todo o caminho que percorremos, na condição de mulher, e, assim, porque estamos no lugar onde estamos. De repente, novas razões, antes invisíveis, explicam a sua vida inteira.
O patriarcado é, inegavelmente, uma estrutura de poder, a mais capilarizada que existe, talvez porque é vertical mesmo em relações que, a princípio, estão despidas de hierarquia. Está em todas as classes sociais, nos mais diversos tipos de relacionamentos: entre pais e filhas, marido e mulher, amigos e amigas, mãe e filho, professores, chefes, colegas de trabalho. A lista é imensa.
Em uma esfera tomada como menos relevante, ainda é deprimente visualizar como vivemos para agradar os homens, em todos os sentidos: na forma em como moldamos os nossos corpos e comportamentos, nas conversas que temos com nossas amigas, todas volvidas para as nossas interações com homens, em como eles nos trataram, tratam e tratarão, o que devemos esperar deles, que tipo de distância criar, para que eles se aproximem de nós.
Esse jogo de amor, que é jogo de caça, deprime e assusta, porque existe. Se nos distanciamos um pouco, ouvimos frases como: “assim ele vai me respeitar mais”; “ela não é tão bonita de rosto, mas é magra”; “você me acha mais bonita que ela? Será que ele me acha mais bonita que ela?”. E, desse jeito, criamos uma competição interna, desnecessária e mesquinha, que os fortalece ainda mais. Agora, pouco a pouco, com essa nova geração de feministas, é que conhecemos o termo sororidade e passamos a nos unir, mesmo que a passos curtos e de forma vagarosa.
É que, apesar de todo poder que, nos últimos tempos, foi nos conferido, ainda sem perceber estamos sempre procurando o que a grande maioria dos homens ainda quer numa mulher, e essa receita é certa: inteligente, mas discreta; bonita, mas nunca vulgar; competente, mas não mais que ele, porque é importante que estejamos sempre em posição de potencial obediência, submissão, sujeição, necessidade.
O pior é que muitas de nós ainda estão dispostas a reproduzir essa receita, passada através de gerações. Lembro-me de minha avó dizendo que não devemos beijar meninos, eles que devem nos beijar e de minha mãe, que mesmo trabalhando os três expedientes, explicava como eu não deveria me colocar muito disponível, porque assim eu seria mais valorizada. Ela contava com orgulho quantas vezes fez meu pai ir de Sousa para encontrá-la em João Pessoa e ela “desistir”, no último momento, de sair com ele. Foi assim que ela o conquistou. Mas esse é o mínimo de liberdade que eles nos dão. Uma vez, aparentemente feitos de bobos, não nos dispensam mais que suas ordens. Não foi o caso dos meus pais, mas é a circunstância mais comum. Na verdade, em relação aos meus pais, essa foi a única expressão de machismo que presenciei. No mais, tive a sorte de só conhecer a extensão dessa estrutura fora de casa, já bem mais velha – que privilégio o meu.
Nesse jogo ingênuo, onde nos sentimos poderosas e no controle de tudo, na verdade, não estamos fazendo mais que alimentar os egos dos meninos. O que fazemos, na verdade, é estabelecer um desafio e nos colocarmos como trofeus. Eles precisarão passar por várias fases, mas, ao final, se resistirem e forem perseverantes, porque o nosso relógio biológico nos convence (ou algumas carências escondidas e esquecidas) que precisamos encontrar alguém antes dos trinta para termos filhos saudáveis e, mais que isso, darmos filhos saudáveis. Aprendemos, desde pequenas, que homens gostam de mulheres difíceis, que devemos renunciar às nossas paixões em nome do amor, do casamento e dos filhos, em nome da nossa própria respeitabilidade.
É que a respeitabilidade de uma mulher é sempre medida a partir do homem ao qual ela está vinculada. Somos chamadas de senhorita antes de nos casarmos, porque somos filhas, e de senhoras, assim que nos casamos, como se só quando nos casássemos passássemos a ser, finalmente, donas de nós mesmas, dos nossos corpos e destinos.
O homem, desde muito cedo, já é sempre senhor. A palavra senhorito nunca existiu. O word sublinha essa palavra. Porque, desde que nascem, os meninos são senhores de si, embora escravos também da cultura patriarcal de que não podem ser sensíveis, nem podem chorar, que devem ser provedores e brigões e que sua arrogância e temperamento forte são sempre aceitáveis.
Mesmo que, legalmente, já tenhamos direito, há alguns anos, a votar, estudar, sermos donas do nosso próprio dinheiro e, em alguma medida, dos nossos corpos, culturalmente, ainda estamos vinculadas à figura ou figuras masculinas mais próximas.
Não existe uma palavra final sobre a questão de gênero. Mas existem os estereótipos: rosa e azul, frágil e forte, prisão e liberdade, razão e emoção, medo e insegurança. Longe disse, existe o ser humano puro, sem interpretações e construções. E nós, mulheres, caladas, precisamos nos desconstruir, pedindo desculpas, continuamente, por todos os atos que praticamos a destoar do que esperam de nós. Esperam que sejamos mães, que, por amor ao cristianismo, sejamos a pessoa sábia que estruture o casamento e edifique a casa, que não bebamos demais e, sobretudo, que não sejamos, de forma alguma, artistas, porque artistas se misturam com todo tipo de gente, todo tipo de classe. Artista é pessoa que senta no meio-fio, que não é luz na vida de ninguém, necessariamente, que procura horizontes onde não há senão esquinas e abre portas onde há garagens sujas, mas cheias de música e avisos de real felicidade. Como ser par de alguém assim?
Ensinaram aos meninos a terem o direito de serem tão desestruturados, para precisar de uma mulher que os ponha no eixo. É a mãe, que o passa para a esposa, mas elas nunca os educarão, nem decidirão as suas vidas. Mães e esposas são bastidores enaltecidos do patriarcado, figuras bonitas na coxia, que reclamam dentro de casa, no silêncio dos quartos, das salas, opiniões restritas ao ambiente doméstico, mas sempre sábias, não necessariamente ouvidas.
Às mulheres não é facultado o direito de se desestruturar. Qualquer passo fora da curva é delírio ou histerismo, porque fomos forjadas para termos sabedoria suficiente para frear os delírios e histerismos masculinos, mas, muito antes disso, para sentarmos da forma correta, usarmos a roupa menos provocativa, mas, ainda assim, feminina, falarmos quando for pertinente, sentarmos em uma mesa apartada para conversarmos sutilezas de mulher, contar piadas sobre como nossos homens são desastrados e precisam de nós para fazerem os seus pratos quando uma mesa é servida à moda americana.
A par disso, vem o mito da mulher branca, sensual, mas nunca puta, trabalhadora, mas não profundamente vinculada à profissão que deixe a família de lado, que cuide do corpo, mas não o suficiente para apenas esperar seu homem cheia de cremes e um leve perfume, culta, mas não demais para que seu companheiro não se sinta inferiorizado, como bem disse Virginia Despentes. Essa mulher existe ou é um mito social? Alguém conhece essa criatura tão independente, mas, ao mesmo tempo, presa ao ponto de se deixar submissa, para não diminuir o parceiro?
A mulher é sempre um ser deslocado. Situada a partir do pai – a menina que se viu nascer, que recebeu carinho, amor, educação de qualidade -, ela se desloca, diretamente, para o parceiro que escolhe. Este homem deve estar equiparado ao pai, ou ser maior que ele – de outro modo, ela cairá, invariavelmente, de patamar. A medida da mulher é o homem que, em tese, terá ingerência sobre ela, nunca ela mesma, como sujeito isolado, profissional, mãe, amiga, militante, ser social. Naturalmente, isso termina em uma condenação, porque as mulheres que não foram mimadas, as abandonadas pelos pais, devem se contentar com um marido supostamente indecente, que não esteja na sua escala de grandeza, mas na do seu pai.
São inúmeros os destinos assim firmados, principalmente pela família tradicional brasileira, que não é senão o pai que deixa a família e aborta quando bem entende. O homem tem escolhas; a mulher, julgamentos. As mulheres pobres, filhas de mãe adjetivadas solteiras (porque não há mães, há mães solteiras e mães casadas, decentes e indecentes, portanto), porque o seu merecimento, enquanto mãe e mulher, vem do valor que o homem lhe dá, o estado civil, a condição social, de esposa e mulher legítima. E a filha abandonada, pelo pai que deixou ou pelo pai morto, também fica marcada por esse amor não concedido.
Também o valor (ou o desvalor) da mulher é visto pelo prisma familiar. As mulheres mais ricas têm mais liberdade para escolher seus parceiros, por diversos motivos: o dinheiro e o status impõem uma barreira insensível para o julgamento público, mas que nunca deixa de acontecer na surdina. Por outro lado, a falta de dinheiro e de status relegam a mulher à condição de serem, necessariamente, escolhidas. E, se não escolherem, serão coitadas, por estarem sozinhas, ou putas, por escolherem vários, como lhes é amplamente permitido. Estamos todas sujeitas ao açodamento público ou ao burburinho sórdido dos covardes.
A cultura patriarcal que coloca a mulher na situação de última alternativa à inferioridade, porque o homem sempre precisa ser agradado e cultuado, diz que nos falta sabedoria para compreender as artimanhas masculinas. Não importa o quanto somos talentosas e competentes, nem como pagamos sozinhas as nossas contas, ainda assim, seremos sempre vulneráveis. Seremos sempre mote para as fraquezas que os meninos sentem. Como quando éramos pequenas e nos obrigavam a usar shorts em vez de saias na escola, para não os distrair. Nós somos a distração ou o meio de afastar a distração.
Outra vez, o que é válido não é o nosso compromisso, nosso direito ao amor e à paixão, à profissão, à vida sem amarras, mas sempre a sujeição à artimanha e ao engano, a resgatar a fragilidade feminina: ela serve como alavanca ou sujeito de interesses diversos que ela desconhece, porque, apesar de seu talento e competência, sempre lhe faltará sabedoria ante toda a astúcia masculina. Nós nunca estamos a par e sempre precisamos de conselhos. Passamos da mão do nosso pai para o nosso marido, conduzidas ao longo da vida, sem ciência, sempre tuteladas. Ao revés, os homens passam de suas mães para esposas, para serem cuidados, mas jamais mandados, porque mães e esposas são, apesar de sábias e maduras, a voz silenciosa que se rende e acolhe, nunca participa, efetivamente.
A sociedade sempre visualizará a mulher como dependente ou potencialmente dependente de um homem, prestes a cair num conto de fadas, fatalmente risível. Não se compreende a mulher como um indivíduo pleno de faculdades, capacidades e possibilidades. Por muitos anos e ainda hoje, somos adereços para os homens, que nos dão adereços para que outros homens vejam: joias, vestidos nobres, amas de companhia, casas para mobiliarmos, porque, no fim das contas, o nosso grande sonho é um projeto arquitetônico, uma casa para montar, um teto do casal, jamais todo nosso. E todos os adereços que eles colocam em nós, sugerem quão poderosos eles são.
Como disse antes, por privilégio, a condição de ser mulher, para mim, por muitos anos, nunca foi um problema. Na verdade, passou despercebida. Meus pais não me falavam de casamento e filhos como um objetivo de vida: antes, era a nossa educação, minha e dos meus irmãos, a pauta principal de nossas conversas em casa. O pouco que ouvi foram essas lições da minha mãe sobre como conquistar rapazes, mas sempre depois de receber parabéns por uma nota excelente, ou uma reclamação por um comportamento ruim na escola.
E, honestamente, penso que minha mãe dizia tudo isso muito mais como um dever geracional, algo que repetiu sem pensar, porque ouviu da própria mãe e da avó e, por isso, esses conselhos sempre parecem válidos. Sei disso porque, no fim das contas, os valores e direções que recebemos foram outros: as pessoas são iguais, Myriam; quem não vive para servir, não serve para viver; o conhecimento vem antes da revolução; é preciso que se faça uma revolução, eles nos disseram, eles, meu pai e minha mãe, diariamente, enquanto estiveram aqui, quase como um mantra.
Por isso, confesso até que releguei, por esses anos, o movimento feminista. Eu simplesmente não precisava dele. Egoísmo de minha parte, mas é o egoísmo da ignorância. Por isso, agora, desde que entendi que o machismo ainda existe e que muitas de nós, como eu, não o percebíamos, passei a enxerga-lo nas suas nuances mais sutis. Ainda assim, eu me achava corajosa demais, empoderada demais para ser vítima – uma palavra que nunca me apeteceu – de ações imbuídas de misoginia, do controle que aparece fantasiado de cuidado, da necessidade de posse que, por descuido, entendemos como uma forte paixão. Estamos todas sujeitas a cair nessa armadilha. Eu caí e caí profundamente.
Neste meu último relacionamento, ouvi, silenciosa, que a mulher comanda o lar e que é vocacionada para isso; que eu não era mulher de verdade, porque não sabia executar tarefas domésticas simples; que se eu não queria ter filhos, era porque não conhecia o amor de verdade; que eu precisava emagrecer, fazer algumas cirurgias estéticas, porque um certo tipo de homem pede uma mulher à altura (e a medida utilizada aqui é a beleza); que se eu colocava meus desejos profissionais antes dos de formar uma família, era porque eu desconhecia o que existia de mais importante na vida: o lar, o sagrado feminino.
É evidente que eu sei que muitas mulheres querem mesmo é ter filhos, formar uma família, serem exímias donas de casa e não há nada de errado nisso. Absolutamente. Pelo contrário. O feminismo é, antes, um movimento de libertação, que nos permite sermos tudo aquilo que quisermos, optarmos por um caminho ou outro e desistirmos dele a qualquer tempo, se quisermos. Querer e poder são as palavras que mais definem o movimento feminista. Não se trata também – e isso é importante ressaltar – de uma ode contra os homens, como muito se confunde, mas de uma luta por união e paridade.
Talvez eu tenha escutado silenciosa, porque é do meu feitio – e, nisso eu me congratulo, porque acho uma imensa vantagem – questionar todas as minhas ideias, sempre. Tenho para mim que tudo muda, e com toda razão, que crenças arraigadas geralmente são limitantes e que, por isso, é preciso refletir. No entanto, em algum momento, deixei de responder com silêncio, porque lembrei que, não obstante a reflexão e a dúvida sejam qualidades importantes, há valores inegociáveis, não sujeitos ao contraditório. E o que estava em questão não era como eu devia me comportar, mas se, ali, naquele ponto, eu ainda tinha escolha. E a liberdade é inegociável.
O episódio que eu vivi na última sexta-feira não se resume à agressão física. Toda violência é reprovável, mas a violência contra a mulher está em outro patamar. Ela parte da necessidade de afirmação de homens inseguros ou seguros demais de seu poder sobre o outro. O outro é a mulher. O apêndice, a joia, o trofeu, o objeto, pedaço de seu patrimônio. É uma relação de verticalização equiparada à de consumo e profundamente enraizada.
A minha mulher. Parte de um patrimônio tanto quanto é uma fazenda, um carro, uma empresa, dinheiro no banco, uma casa. A minha mulher, que não pode representar nada diferente do que eu represento, que não pode se comportar de uma forma que eu ache que possa me desrespeitar, que precisa estar sempre pronta para a imagem que eu tenho na sociedade. A minha mulher não tem uma imagem própria, ela surge a partir de mim, nasce das minhas ideias e funciona de acordo com os meus desígnios. A minha mulher se cala, porque eu digo quando ela tem que falar – e ela fala depois que eu falo, ela fala o que eu falei.
Embora eu soubesse que essa sistemática de relacionamento existisse, nunca tinha participado dela e nem visto, pelo menos não tão de perto. Meus pais eram companheiros. Tinham ideias juntos, discordavam, discutiam, cada um ia para o seu lado e, no dia seguinte, voltavam a se amar e, mais que isso, a serem amigos, parceiros, testemunhas um da vida do outro. Eu nunca vi violência na minha casa – outro grande privilégio. Nem na minha casa, nem da dos meus tios, nem mesmo de amigos próximos. Violência contra a mulher era, para mim, notícia de jornal ou conversa de rua, uma realidade longe demais, mas que, lógico, nunca deixou de me tocar.
De tudo se pode extrair o melhor. Há algum tempo, minha vida tem sido fazer de limões limonadas. Desse episódio, eu percebi como tive sorte: sorte por ter vivido rodeada de pessoas que se amavam e que me amavam. Sorte de saber que amor não é violência. Sorte de saber que violência não é amor. Mas eu sei que nem todo mundo teve essa sorte, agora, mais do que nunca. A sorte maior, contudo, foi outra: ensinaram-me que existe uma responsabilidade ética, moral, ativa, que precisa ser efetivada, colocada em ação de explicar que ninguém deve se conformar com sorte ou azar, de que não podemos aceitar o que, aparentemente, o destino nos reservou.
Essa ideia de destino, conquanto às vezes sedutora, precisa ser sempre afastada: nós construímos o nosso próprio destino. Não se trata de uma crença desarrazoada na meritocracia irrestrita, mas na confiança de que a empatia e a solidariedade podem erguer todos os que não tiveram os mesmos privilégios que nós e de abraçar essas pessoas, tanto quanto fomos abraçados. A confiança de que os privilégios deixarão de ser privilégios. Essa visão antes tão utópica, mas que, agora, dia a dia, vejo se confirmar. Porque a gente quer igualdade, não privilégio. A gente pede o fim dos privilégios e o exercício dos direitos. Sendo assim iguais, para os desiguais.
Agora, tem muita ferida aqui, muita revolta, mas tem também muito conforto. Eu tive medo e me disseram que eu era corajosa; eu me senti um nada e me disseram que eu era especial; eu me senti sozinha e me vi rodeada de gente. Gente de verdade. Gente que se solidariza, que envolve, toma as dores, que luta com você, que pensa como você. Gente boa. Eu tenho um olho roxo, uma porção de hematomas, uma orelha rasgada, o corpo todo dolorido, uma alma machucada demais por não entender porque alguém que dizia me querer tanto bem pode me bater, chutar, esmurrar, jogar no chão. É uma confusão mental infinita, gosto ruim na boca, alguma náusea. Mas tenho comigo uma fé indescritível de que tudo vai mudar. Uma mania. E a gente demora a perder manias (que bom, às vezes).
Eu pensava que as pessoas estavam se afastando. E, o mais curioso, é em nome da segurança que, nesse momento político, as pessoas estão se afastando, quando o normal era que se aproximassem. E eu, da constelação que nasceu dois dias antes de cair o muro de Berlim, fiquei apavorada. Foi em nome da segurança (e, pior, da segurança das ideias) que Berlim ergueu aquele muro; foi em nome da segurança que a multiplicidade do imperio romano cedeu às defesas do feudalismo e que, agora, faz com que voltemos a um processo mais nacionalista, menos global, mais individual e egoísta. É a pergunta mais trivial e complexa: como parar o medo? Mas, na verdade, talvez a pergunta fosse: devemos mesmo viver com medo?
Neste momento em que se pede segurança em nome de tudo e apesar de tudo não é fácil abraçar a arte, que parece escorregadia, nem a Rua, que é vulnerável, ou as vozes diferentes, que podem causar ainda mais entropia. Não é fácil abraçar o feminismo, porque os homens ainda parecem muito mais fortes e capazes de conferir segurança. Mas a gente se abraça, não se afasta, um segura a mão do outro, desafia um momento da história do ser humano onde há a construção de um muro que achamos que não veríamos mais. Isso só pode vir de muito amor ou loucura – como um se confunde com o outro, é provável que jamais venhamos a saber.
Essa loucura que alguns homens não querem ver nas mulheres, essa só denominada loucura porque, quando está neles, não é senão uma demonstração de firmeza e vigor. Em nós, é histerismo. E nos calamos e permitimos que esses muros se construam. Entre nós e a sociedade. Entre a porta de casa e a calçada. Para que ninguém saiba o que se passa entre quatro paredes. Mas, como alguém bem disse, o que se passa entre quatro paredes, se repete e machuca, já não é privado, é público, político, social. É dever.
Precisamos falar disso tudo. Conversar, mais do que nunca. Eu apanhei porque conversei demais – a justificativa foi essa, se é que se pode chamar de justificativa. Eu apanhei porque ousei me comportar como um homem, na concepção do meu agressor. Porque as mulheres devem falar pouco e apenas com mulheres. As mulheres não devem beber demais. Rir muito alto, fazer barulho. Precisamos ter gestos calmos, pacientes, ter os olhos cheios de carinho e as mãos cheias de perdão, como falou Vinícius de Moraes, de quem eu sempre gostei tanto mas que, agora, deixa-me um tanto irritada. As mulheres devem se reservar, porque são preciosas demais para se exporem. Já somos bonitas demais, para chamar atenção com ideias e palavras. Para contextualizar, para fazer parte.
Um dos episódios mais marcantes que vivi neste último relacionamento, foi quando de uma viagem que fizemos com alguns amigos dele e suas esposas. Cheguei primeiro no hotel, porque ele vinha em outro voo. Encontrei o pessoal já no lobby, tomando uma cerveja e conversando. Homens e mulheres. Sentei para conversar e pedi uma cerveja também.
Em um dado momento, as mulheres resolveram ir ao shopping, para comprar uns brincos para usar à noite e me convidaram. Eu tinha brincos na mala e a conversa estava boa, então, preferi ficar. Quando ele chegou, perguntou incisivo porquê eu não tinha ido ao shopping com as mulheres e o que eu estava conversando com três homens – amigos dele, é bom lembrar – tomando cerveja num lobby de hotel. Expliquei que não tinha nada para fazer no shopping e que estávamos a discutir negócios, direito e política. E aí ele ficou muito vermelho e rebateu de pronto: mas o que você entende de negócios, direito e política? Eu o olhei estarrecida, a relembrá-lo, com esse olhar, que eu era empresária, que era advogada militante há mais de seis anos, advogada tributarista, e que minha família e eu éramos envolvidos com política há mais de cem anos. Como ele não compreendeu, eu precisei falar. Falar tudo isso. Falar como eu existia, como eu era, onde eu me situava no mundo, do que eu gostava. Mas ele não respondeu nada e se irritou mais ainda. Depois de alguns minutos, perguntou se eu não iria me maquiar para ir à festa, pois já estava tarde.
Foi aí que entendi que apanhei porque eu quis existir. Porque eu sempre existi. Mas eu não tinha, até então, existido perto de alguém que não entendia que eu podia. Mas eu posso. E continuo existindo. Mais que isso, fazendo questão que todas nós existamos. Plenas, seguras, iguais, falantes, vibrantes, cheias de vigor e brilho, energia e mágica, para limpar a casa ou fazer política, bordar e escrever, lavar roupa e entender um balanço contábil, cozinhar e consertar motores, cuidar dos filhos e pilotar aviões, assim como os homens. Para sermos livres. Liberdade é não ter medo, como disse Nina Simone. E o verão já chegou por aqui.
É interessante lembrar que essa história, hoje, é minha, mas pode ser sua, da sua filha, da sua irmã, neta, da sua melhor amiga. Como eu disse, para mim, era algo distante demais. Página de jornal, notícia de rádio. E, como eu falei, eu me achava forte demais para que alguém tivesse coragem de bater em mim. Afinal, eu sou advogada, branca, venho do que chamam uma família tradicional em nosso estado, tive uma boa educação, pago minhas contas sozinha, meus pais sempre me trataram com carinho e os percalços que tive, consegui enfrentar com louvor. Mas talvez tenha sido justamente por isso. Porque a mulher não pode e, quando ela pode, ela precisa não poder, deve ser colocada no lugar dela, esse lugar de reserva, de adubo para a falta de confiança do sentimento de alguns homens.
E, mais que interessante, é preciso dizer que não é só uma mulher tida como independente para passar por isso. O homem machista não é contra um tipo de mulher, mas contra as mulheres, porque, apesar de tudo, ele visualiza algo de humano em nós que pode, a qualquer momento, rebelar-se contra o seu poder. Sair, ser maior, não precisar, indispor-se, lutar, existir, sem amarras. Ouvi relatos diversos, de boas donas de casa, meninas e mulheres silenciosas, sempre de acordo com a cartilha de seus homens e que, mesmo assim, foram vítimas, mesmo seguindo à risca a cartilha do patriarcado, cartilha cruel e desumana, que sempre encontra uma razão para dizer que merecemos. E algumas acabam entendendo que merecem, de verdade.
Hoje, ouvi um pronunciamento do meu ex-namorado sobre o ocorrido. Como de praxe, fui acusada de tê-lo provocado por diversas vezes, que eu o instiguei até ele chegar onde chegou. Disse que eu tinha provas de que ele era um homem bom, que tinha diversas mensagens e declarações de amor e que achava interessante como isso havia mudado da noite para o dia. Que eu era dada a excessos e que fui persuadida a usar o episódio, politicamente, contra ele. Que não tinha medo de enfrentar minha família nas urnas e que não tinha medo de nada. Que amargaríamos outra vez uma derrota política. Que era gente, que tinha sentimentos e que estava certo. Que eu fui orientada a divulgar e transformar uma situação pessoal em um ato político e que havia uma pressão para atrapalhá-lo em sua caminhada política. Que eu o agredi. Que não é homem para constranger mulher. Que atenua minhas ações porque eu estaria fora de mim. Que não fez nada além de se defender.
Não há nenhuma novidade nisso. É praxe dos agressores colocarem a culpa nas mulheres, dizer que os provocamos, que tiramos os seus juízos, esses juízos frágeis dos quais devemos estar dispostas a cuidar. Que nós, com isso, com o histerismo quase ínsito à mulher, conseguimos fazer. Também é praxe tentar deslocar a agressão para qualquer outra situação: no nosso caso, o fato de sermos de grupos políticos distintos. Outra praxe é conduzir a mulher para o seu lugar de indefesa e vulnerável: eu fui orientada a divulgar uma situação privada, não foi ideia minha. Ainda, o perdão que me concede sem eu pedir nem precisar, o perdão que toda mulher precisa, simplesmente, por ser mulher. Porque, por essa fatalidade de termos nascido mulheres, já precisamos pedir desculpas e ser perdoadas, merecer atenuantes por nossa fragilidade que nos faz tão enlouquecidas. E, por fim, mas o mais importante, que não fez nada além de se defender, apesar da clara desproporcionalidade da conduta, da imoderação assumida, em sua fala e nas cicatrizes que ainda estão em meu corpo.
É claro que eu o amei e que declarei o meu amor. Em mensagens, dedicatórias de livros, em seu ouvido. E é difícil deixar de amar, para ser bem honesta. Tão difícil quanto compreender porque alguém que diz nos amar de volta é capaz de nos machucar tanto. E o amor permanece, porque é forte, telúrico, terral. Mas não há amor que resista a tantas feridas, desacertos, mentiras e covardias. E o amor também passa, apesar de o coração permanecer insistente. E nessa briga entre o racional, a integridade física, a honradez contra uma paixão quase inescapável, é preciso que permaneça o amor. Mas o amor próprio, a segurança, o respeito consigo mesmo que só os seres humanos mais altivos conseguem sustentar. E eu espero que isso fique cada vez mais claro, grave, confiante.
Não existe embate político nessa história, eu jamais quis conferir essa feição à circunstância da minha agressão, do meu espancamento, da minha humilhação. Infelizmente, o meu agressor, para fugir do real escopo, preferiu acostar este tom aos fatos. Não há que se falar em urnas, nem em eleição. Se há algo de político nisso tudo, é a violência contra a mulher, diuturna, o machismo estrutural, a cultura do patriarcado que precisa, urgentemente, ser combatida. Ainda e por isso, não há nada de privado nessa história. Todas as situações privadas que se repetem, passam a ser públicas e políticas. Não eleitoreiras, é preciso repetir, mas políticas, porque dentro de uma ambiência que merece e já têm a atenção do estado. Por isso, essa história foi contada e continuará a ser contada. Porque não conta com nenhum outro propósito senão a de trazer à lume um crime. Porque os crimes precisam ser relatados, com a finalidade de punição e pedagogia. Porque têm data certa para serem perdoados, uma data prevista em lei.
Por fim, não existiu legítima defesa. Até os leigos sabem que a legítima defesa é proporcional. Não existem duas partes erradas. Existe uma mulher espancada e um homem que, mais uma vez e como tantos outros, tenta deslocar para si o lugar de vítima. Só há uma vítima nessa história e, embora eu deteste esse papel, hoje, essa vítima sou eu. No imenso tumulto entre amor e ódio que divide o meu coração, eu reencontro mais o meu sofrimento do que essas duas outras sensações. O conflito entre o abuso e o carinho, o ataque e a disfarçada leveza. Eu aceito o peso, mas nunca a imputação do erro; aceito a condição de vítima, por ora. Dentro em pouco, no entanto, voltarei a ser movimento. Movimento feminino, humano, doce, criativo, vivo, curioso, insaciável, incansável, ciente de que a vida é muito maior do que esses breves desertos.