O pesado fardo de Serafim, a lenda de nossas ruas. Confira com Palmarí de Lucena
A última crônica do escritor Palmarí de Lucena trata de um personagem conhecido por muitos, que, há anos, peregrina pelas ruas do Estado carregando seus fardos com os restos deixados por quem tem de sobra. Serafim é seu nome. Uma lenda, “fruto de uma postura social favorecendo a ótica que torna idosos invisíveis nas nossas ruas, principalmente aqueles que aguçam sentimentos de repulsão, vergonha ou culpa”.
Confira a íntegra de seu comentário “O fardo pesado de Serafim”:
“Idoso maltrapilho, rosto suado espelhando a fadiga de carregar seu fardo, subsistindo com o mínimo necessário para enfrentar um triste cotidiano. Chamado de Serafim, o homem descansava encostado na parede da vaga reservada para pessoas deficientes, ironicamente transformando o espaço em um abrigo temporário longe de olhares curiosos. Pessoa genérica buscando refugio na sombra da farmácia.
Observamos Serafim caminhando aleatoriamente, seguindo trilhas imaginárias ao longo do meio-fio ou acostamento. Carregando um fardo pesado nas costas, seu jugo contradizendo a suavidade bíblica. Aproximamo-nos dele tentando entender a motivação ou condição de saúde mental dificultando possibilidades de compactuar com o mundo barulhento ao seu redor. A ambiguidade e o anonimato do idoso haviam criado inúmeras fantasias e lendas urbanas. Falavam que era membro de uma família diferenciada e financeiramente independente, a mais popular narrativa repetida por pessoas sugerindo familiaridade com o histórico e as andanças de Serafim. Fake News?
Serafim, a lenda, é fruto de uma postura social favorecendo a ótica que torna idosos invisíveis nas nossas ruas, principalmente aqueles que aguçam sentimentos de repulsão, vergonha ou culpa. O fato de ele não fazer abordagens ou solicitações agressivas por auxílio financeiro aumenta o mistério e a alienação social evidentes na postura deliberadamente antissocial hostil às pessoas que querem ajudá-lo.
Tentamos dialogar com Serafim. Grunhidos e mãos nervosas pediram que nos afastássemos, dissuadindo novas tentativas. Continuamos observando suas idas e vindas, sem nunca trocarmos uma palavra. Surgiram boatos da sua morte prontamente desacreditados após alguém encontrá-lo sentado no meio-fio, perdido em devaneios. Serafim é um dos muitos idosos invisíveis enfrentando os perigos e preconceitos das ruas e das calçadas, quase sempre precificados ou ignorados como excesso de bagagem social. É tempo certo de fazê-los visíveis nas nossas decisões de Ano Novo.”